Críticas


CARA OU COROA

De: UGO GIORGETTI
Com: EMILIO DE MELLO, WALMOR CHAGAS, JULIA IANINA, OTAVIO AUGUSTO
08.09.2012
Por Nelson Hoineff
O CHATO E O REACIONÁRIO

Toda ditadura é ruim - mas algumas são mais desinteressantes do que as outras. O período militar iniciado em 1964 no Brasil tem sido tema de inumeráveis filmes – a maior parte dos quais dirigidos por artistas que de alguma forma sofreram com o regime. Essas obras compõem um quadro legitimamente denunciatório e saudavelmente expiatório de mágoas, ressentimentos e perdas. São poucas as que mentem no que dizem respeito aos fatos, mas talvez sejam menos ainda as que não fantasiem no tocante aos seus protagonistas.



O cinema brasileiro que tematiza o período militar não é bem um cinema político – se considerarmos político o cinema feito imediatamente antes ou durante o regime - como O Bravo Guerreiro, Vida Provisória, O Desafio, Deus e o Diabo, Prata Palomares, O País de São Saruê, entre tantos outros – mas um cinema de registro, lembranças, idealizações de uma época. É, queira-se admitir ou não, um cinema em grande medida sectário e geralmente desprovido de humor - em parte levado pela crença de que os anos de chumbo não admitem um olhar retórico sobre ele, mas em parte, talvez, pela simples falta de memória.



O Brasil que está presente nesses filmes sofreu com a arrogância militar, mas, sempre que lhe foi possível, manteve-se divertidamente crítico em relação ao que estava acontecendo. Veja-se o Pif-Paf, de Millor; veja-se O Pasquim; veja-se os poemas de Camões e as receitas culinárias que substituíam, nos maiores jornais do país, as matérias censuradas dentro das redações. Veja-se a relação existente entre os próprios jornalistas e seus censores.



O personagem mais reacionário de Cara ou Coroa não é um general, mas o comunista que censura a peça que o próprio partido está produzindo. Laboratório de corpo, toque interpessoais, tudo isso é coisa da burguesia, que não serve à causa e deve ser banido. Ele compõe, com o chato apocalíptico de esquerda, os dois personagens mais divertidos do filme. Seu diretor, Ugo Giorgetti, nunca foi o que se chamaria um cineasta engajado. Na época da revolução ganhava dinheiro como um próspero diretor de filmes publicitários para grandes agencias de propaganda como Alcântara Machado e Denison e dirigia um documentário de longa-metragem sobre o campeão de boxe Eder Jofre. Passada a revolução, Giorgetti fez, em menos de dez anos, três dos filmes brasileiros mais divertidos dos anos 90: Festa (na verdade de 89), Sábado e Boleiros.



Giorgetti é um cineasta comprometido com o bom humor e com as coisas de São Paulo – a sua arquitetura, os seus hábitos, a deselegância discreta de suas meninas. Seu novo filme é então um recorte de algo que acontecia na cena teatral de São Paulo na época em que os militares pousavam no poder. Algo que de medíocre e tedioso – como o chato ou o comunista reacionário – não tem nada. Algo como Peter Weiss, Fernando Arrabal, Genet, Ruth Escobar – para não falar do Living Theater, cuja prisão em Ouro Preto pontua grande parte do filme.



Seu herói – quem salva a pele de dois anônimos supostamente procurados pelo regime, porque tal coisa nunca se percebe – é justamente um general, “reformado, mas general”. Contra cabeludos e homossexuais todo mundo é, inclusive um magistral Otávio Augusto como um chofer que taxi que no fundo também tem coração e vai pagar a conta do garoto comunista que aparentemente perdeu a namorada.



Subsidiado pela perseguição dos militares a um jovem grupo teatral, tudo ainda assim é festa em Cara ou Coroa, amparado também pela fotografia de Walter Carvalho que, como habitualmente, entende e potencializa a obra que está filmando. Não há muita diferença entre Sábado ou Boleiros, exceto pelos militares, cuja presença é latente (como tudo é latente em Festa) mas nunca ostensiva. Como na maioria dos filmes de Giorgetti, Cara ou Coroa é bem escrito, recheado de grandes personagens, de verdades, de grandes atores e grandes momentos.

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