Especiais


FESTIVAL DO RIO 2012: MAIS UM ANO

17.10.2012
Por Luiz Fernando Gallego
REPETIÇÕES E MUDANÇAS

MAIS UM ANO, de Mike Leigh



Em um dos quatro segmentos de Mais um ano, um personagem comenta seu desconforto em voltar para sua cidade depois de visitar um casal amigo em Londres. Ele tenta se aproximar de uma outra amiga do casal que é descasada, carente, mas que o rejeita abertamente depois de uma investida mais direta por parte dele, quando ela lhe dá uma carona e vai deixá-lo na estação de trens. Ele precisa correr ou vai perder o trem. Mas depois da cena em que o vemos saltando do automóvel, a tomada seguinte é a do trem, visto de baixo, atravessando a tela da direita do espectador para a esquerda. O trem passa e a câmera se deixa ficar alguns segundos na visão do barranco onde, no alto há a linha férrea e o céu no fundo. A imagem escurece e surge o letreiro que abre a terceira parte do filme.



Esse é um bom exemplo de como funciona o olhar de Mike Leigh sobre a história (ou não-história) que ele oferece ao nosso olhar cativo das imagens na tela. O personagem, Ken (Peter Wight) só é visto nessa parte do filme com sua obesidade e voracidade alimentar ansiosa. Mas já faz parte do círculo de amigos do casal central em torno do qual as situações se desenrolam episodicamente. Na verdade, ‘Ken’ já faz parte do nosso círculo de personagens “conhecidos”. Como se fosse também alguém que conhecemos há tempos, um amigo que vive mal, uma vida rotineira e insatisfatória, e que pode ter sido bonitão quando mais jovem, mas que está acabado e cuidando muito mal de si mesmo: bebendo, fumando e comendo – tudo demais.



É assim que Mike Leigh consegue fazer o espectador conviver com seus personagens, captando nosso olhar para situações prosaicas do cotidiano, situações mais ou menos fugidias e encenadas com uma naturalidade que não tem nada a ver com um “naturalismo” forçado de propostas aparentemente “realistas”, mas que muitas vezes não passam de convenções do que as platéias foram acostumadas a considerar como “realidade”, “natural”, a vida “como ela é” – ou seria – ou ainda: deveria ser (para parecer “real”, mas só nas telas).



Dizem que Leigh filma após ensaiar com seus atores sem um roteiro escrito e amarrado: haveria apenas as situações que ele espera que os atores desenvolvam em improvisações – desde que fiquem do seu agrado. Não sabemos se ele mantém essa forma de estruturar o projeto em obras como este Another Year (título original), de 2010, inexplicavelmente não lançado comercialmente no Brasil até agora. É difícil acreditar que este filme tenha sido feito assim, por mais que o elenco seja acostumado com o cineasta, quase todos participantes de outros trabalhos cinematográficos de Leigh. Mas também era inacreditável que esse tivesse sido o método usado em sua realização mais famosa e bem-sucedida, Segredos e Mentiras, de 1996. Mais um ano, em nossa opinião, é o melhor filme de Leigh desde então.



Mesmo usando a surrada estrutura de segmentos correspondentes às quatro estações do ano, o que bate na tela importa como repetição e novidades de um quase-ritual nas vidas de um casal sessentão ou perto de chegar lá: Tom e Gerry (com trocadilho) mostram-se estáveis em sua longa parceria de vida, aficionados de sua horta - que visitam quase todos os fins-de-semana, fora de Londres - e receptivos a amigos com vidas menos estruturadas: o já citado solteirão ‘Ken’; a igualmente mencionada (e figurinha fácil nas vidas de Gerry e Tom), ‘Mary’, descasada e carente ao extremo; um irmão de Tom que fica viúvo; outro amigo cuja esposa não o acompanha na visita por motivo mal esclarecido...



Em cada “estação” (do ano e do filme) repetem-se as visitas à horta, e as visitas à casa de Tom (Jim Broadbent) e Gerry (Ruth Sheen) por parte dos amigos - e do filho único do casal, trinta anos e sem namorada à vista. Os diálogos eventualmente se alongam mais do que estamos acostumados a ver/ouvir em filmes, mas jamais se tornam saturados: se muita coisa parece repetição (o dia-a-dia, a rotina), algumas pequenas “novidades”, igualmente cotidianas, vão surgindo aqui e ali. Por exemplo, na fotografia do colaborador habitual de Leigh, Dick Pope, que muda sutilmente em cada época do ano em que o filme se passa, sendo mais notável a diferença entre a luz mais colorida da “primavera” inicial em relação ao cinza-azulado inverno do final. Mas a gradação de uma época à outra é bem delicada, quase imperceptível.



A música também não parece variar muito, mas talvez também inclua delicadas variações, e é de Gery Yershon, que vem trabalhando com Leigh há menos tempo, oriundo de composições para o palco. E a montagem é de Jon Gregory, que não editava para Leigh desde Segredos e Mentiras, transmitindo sem cortes abruptos a fluência nas mudanças dos rostos e as expressões dos atores em grandes planos de suas faces. Aliás, é impressionante a intimidade transmitida, mesmo em tela larga, quando Leigh enquadra os rostos nesses planos bem próximos, enfatizando os semblantes dos atores/personagens. E estes são essenciais para o resultado atingido: além do casal central, com o mais conhecido (e já oscarizado) Broadbent ao lado de Ruth Sheen, perfeitamente convincentes como dupla, um dos destaques é a interpretação de Lesley Manville como ‘Mary’, a um passo de cair na caricatura que a atriz consegue evitar com sua capacidade de composição interiorizada, “de dentro para fora”. Seu “diálogo” com o monossilábico David Bradley (minimalista do tipo “menos é mais”) é seu maior momento, ao lado da cena final que se encerra em seu rosto consciente das diferenças entre “grandes amigos” e “família”.



Já mencionamos Peter Wight, em composição mais exteriorizada, sem deixar de permitir a empatia do espectador para com suas vivências íntimas não-ditas, além do que é evidente em sua conduta “cardisplicente” (como dizia o nosso Antonio Maria sobre os descuidados com o músculo cardíaco). O não-dito, aliás, é um tema subjacente do filme, anunciado no prólogo quando Gerry, que trabalha com aconselhamento em posto de saúde, entrevista uma depressiva Imelda Staunton (outro rosto explorado em closes) que mostra claramente como é difícil para os ingleses (mas não só) falarem de sua vida íntima.



Talvez o casal Gerry e Tom seja tão centrípeto para seus amigos porque eles sabem escutar: eles criam um clima de confiabilidade, eles são acolhedores e verdadeiramente amigos. Por outro lado, como é difícil para a senhora vivida por Imelda no prólogo, e também para ‘Mary’, aceitar o que Gerry indica como “auxílio profissional” (aconselhamentos como ela faz - e certamente psicoterapias confessionais como a psicanálise).

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário