Festival da Ilha de Wight, Inglaterra, 1970. Uma magnífica tomada aérea descortina, em cores vibrantes, uma multidão que se aglomera em frente a um pequeno palco, com barracas de camping se espalhando por um vasto descampado. Corta para Gil e Caetano sendo apresentados pelo mestre de cerimônias como expoentes da nova e vigorosa música que vem sendo feita no Brasil, mas que, por problemas políticos, não podem se expressar em seu país.
A cena acima é apenas uma entre as inúmeras raridades que podem ser vistas no documentário “Tropicália”, de Marcelo Machado. De “O Homem Que Engarrafava Nuvens” a “Raul – O Início, O Fim e o Meio”, a história da MPB vem sendo recontada nas telas de forma brilhante, graças ao resgate de imagens que vêm de uma época em que a memória de nossa cultura audiovisual era pouco cuidada. De filmes perdidos em incêndios ou que apodreceram em cinematecas, a arquivos de televisão que foram simplesmente apagados ou jogados no lixo, muita coisa se perdeu. Por isso, o pesquisador Antônio Venâncio, presente nos créditos de boa parte da safra recente de documentários, deveria ser considerado co-autor destes filmes, que dificilmente teriam o mesmo impacto não fosse o seu precioso trabalho de garimpo.
Assim como em “A Música Segundo Tom Jobim”, de Nelson Pereira dos Santos, Marcelo Machado se vale sobretudo da força das imagens e da música para transportar o espectador no tempo e no espaço. “Tropicália” não chega a ser tão radical em sua proposta quanto o filme de Nelson, que não deixou que o presente contaminasse o desfile do passado jobiniano. Depoimentos recentes de Caetano, Gil e do artista gráfico Rogerio Duarte figuram como fio condutor da narrativa, ajudando a reconstruir e explicar o que foi o movimento, ao lado de testemunhos de época e atuais de outros expoentes do Tropicalismo, como Os Mutantes e Tom Zé.
A grande sacada de Machado foi fazer com que os depoimentos recentes servissem de suporte para as imagens do passado. É como se fosse uma espécie de “comentário em áudio” como vemos nos DVDs, em que as vozes de atores e diretores comentam as imagens exibidas. Só na parte final do documentário vemos Caetano, Gil e os demais sobreviventes, nos dias de hoje, falando contra um fundo preto ou uma tela exibindo cenas do próprio filme.
Coerente com a proposta antropofágica do próprio movimento, “Tropicália” embaralha Nara Leão, Chacrinha, Helio Oiticica, Passeata dos 100 mil, enterro de Edson Luís, Toquato Neto, posse de Costa e Silva, “Meteorango Kid”, “Hitler Terceiro Mundo”, etc, ao som de “Bat Macumba”, “Back in Bahia”, “Tropicália” e outras músicas que mostram a força e a importância cultural do que foram aqueles anos intensos e como eles reverberam nos dias atuais. Um filme precioso e obrigatório.