Em uma cena do ótimo e pouco visto documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas(1999), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, um travesti condenado a oito anos de prisão por tráfico de drogas diz que a penitenciária onde cumpre pena, no Recife, é um inferno. A cena anterior mostrava um show do grupo de hip hop Racionais MCs, cantando Diário de um Detento, cuja letra descreve o massacre do presídio do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992. Carandiru, o filme de Hector Babenco, não é um documentário, mas permite que se entenda melhor porque penitenciária brasileira é um inferno – seja em Recife ou São Paulo – e traduz em imagens tudo aquilo de que falava a música dos Racionais. Só por isso ele já pode ser considerado um dos filmes mais importantes feitos no país nos últimos anos.
Carandiru vem se somar, além do Rap do Pequeno Príncipe, a Cidade de Deus, Ônibus 174, Madame Satã, O Invasor e Bicho de Sete Cabeças, filmes que levaram às telas brilhantemente o tema da exclusão social e têm ajudando a repensar o Brasil de hoje, além de dar nova cara e vigor ao cinema nacional. Mas a participação de Babenco nesse cenário começa algumas décadas antes – mais precisamente em 1980, quando ele lançou Pixote – A Lei do Mais Fraco e comoveu o mundo ao mostrar o lado humano de um trombadinha paulista. É impressionante reparar como certas situações se reproduzem de forma quase idêntica nos dois filmes, mostrando que, 20 anos depois, pouca coisa mudou no sistema de encarceramento brasileiro, da Febem à Casa de Detenção (o Carandiru). É duro constatar que muitos daqueles meninos representados em Pixote, se não morreram nesse meio tempo, provavelmente se transformaram nos moradores do Carandiru.
Antes de começar a analisar o filme em si, vale a pena chamar a atenção para outro aspecto no qual ele tem muito a contribuir: a popularização e valorização do ator negro no cinema brasileiro. Como há bons atores negros (vários desconhecidos) nesse filme! O sucesso de público de Cidade de Deus, se repetido por Carandiru, derrubaria de vez a tese de que o grande público só vai ao cinema para ver rostos bonitinhos de atores manjados (a presença estratégica de Rodrigo Santoro num papel pequeno funciona apenas como isca). E abriria caminho para um cinema brasileiro centrado em temas sociais e com potencial comercial, garantindo um aporte maior de recursos para produções desse tipo.
Carandiru atinge seu objetivo primordial, que é traduzir, na tela, o espírito do livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Filme e livro provocam no espectador-leitor a mesma sensação: a de estar ingressando em um mundo desconhecido, que a princípio lhe causa apreensão, mas que aos poucos vai descortinando um universo envolvente, habitado por seres humanos e não apenas por monstros, como se imagina do lado de fora. Há um tom de denúncia? Lógico que há, afinal filme e livro dão voz a prisioneiros que viviam em condições sub-humanas e foram vítimas de um massacre que causou a morte de pelo menos 111 deles.
Por conta disso, acaba-se tomando partido dos presos, e aí entra aquela discussão sem fim de que “é errado mostrar só um lado da moeda”, “os policiais não foram ouvidos”, etc. Babenco sempre irá se defender dizendo que apenas adaptou fielmente um livro que relatava histórias dos presos contadas a um médico. Além disso, argumentará que seu filme é uma ficção, e não um documentário. Eticamente, ele é inocente.
O livro de Drauzio Varella traz relatos de vários tipos de criminosos: traficantes, assassinos, ladrões de banco, além daqueles que juram não terem feito nada para estar ali. Em todas as histórias, porém, há um aspecto que salta aos olhos do leitor: não há vilões diabólicos, o Mal encarnado, apenas seres humanos que optaram – ou foram levados a optar – pelo caminho da contravenção. Logo, cria-se uma empatia por eles. Fico imaginando como reagiríamos se houvesse no filme, por exemplo, um Elias Maluco descrevendo a forma cruel como matou o jornalista Tim Lopes, sem nenhum sinal de arrependimento. Mas não. Os personagens do livro e do filme parecem todos vítimas de um Estado falido e de uma sociedade injusta. E só.
Com isso, fica mais fácil vender a tese proposta por filme e livro: de que seres humanos estão entregues a um sistema carcerário que jamais conseguirá cumprir sua função primordial, a de ressocializar os prisioneiros. Frente à desastrosa atuação do poder público na questão, é preciso a interferência de médicos e outros tipos de cidadãos que prestam serviços voluntários para que aqueles “pobres coitados” possam voltar a se sentir gente.
Pena que o filme de Babenco consiga captar apenas superficialmente um dos aspectos mais fascinantes do livro: o modelo de organização social criado pelos presos ali dentro, que obedece a normas de conduta e códigos de ética próprios e fazem com que eles exerçam um civismo raro de ser encontrado aqui fora (entre os diversos exemplos descritos por Drauzio, estão a limpeza das latrinas e do espaço público, o respeito à mulher do próximo).
Quase todos os personagens do livro estão no filme, graças à engenhosa forma encontrada pelo roteiro de condensar aspectos de diversos personagens em um só, conferindo assim mais dramaticidade à história de cada um deles sem trair a estrutura original do livro. A única coisa que o roteiro não conseguiu solucionar bem foi a participação do médico como fio condutor dessas histórias. O esquematismo na forma como ele introduz os personagens (“e você, fulano, qual a sua história?”) é agravado pelo sorrisinho que exibe ao ouvir algumas histórias que são fortes demais para serem recebidas daquela forma.
A exemplo de Cidade de Deus, Carandiru parece ter sido pensado como veículo para atingir um público pouco habituado a pagar ingresso para ver miséria, desgraça e violência. E isso, ao contrário do que muita gente pensa, é um mérito. Até porque o objetivo aqui, antes da denúncia, é revelar ao cidadão habituado a outro tipo de visão que um presídio também é habitado por seres humanos que amam, sofrem, tiveram e têm uma vida do lado de fora, como qualquer um de nós. E isso Babenco faz impecavelmente. Personagens como o mulherengo Majestade ou o casal formado por Sem Chance e o travesti Lady Di divertem e ganham o espectador no ato.
O belo trabalho de direção de arte é acompanhado pela sempre competente fotografia de Walter Carvalho, que seduz mais do que oprime, mesmo num ambiente que na vida real talvez se assemelhasse ao Inferno de Dante. Assim fica mais fácil para o espectador adentrar a barra pesada de um universo empesteado pelo crack, pela Aids e pela falta de esperança. E se emocionar e cantar, junto com os presos, o Hino Nacional antes de uma partida de futebol. É ali, nesta cena antológica, que o cinema brasileiro – e o povo brasileiro – mostram sua cara.
# CARANDIRU
Brasil, 2003
Direção: HECTOR BABENCO
Roteiro: VICTOR NAVAS, FERNANDO BONASSI e HECTOR BABENCO
Produção: FABIANO GULLANE e FLÁVIO TAMBELLINI
Fotografia: WALTER CARVALHO
Montagem: MAURO ALICE
Direção de arte: CLÓVIS BUENO
Música: ANDRÉ ABUJAMRA
Elenco: LUIZ CARLOS VASCONCELOS, MILTON GONÇALVES, IVAN DE ALMEIDA, AILTON GRAÇA, GERO CAMILO, MARIA LUÍSA MENDONÇA, RODRIGO SANTORO
Duração: 146 min.
site: www.carandiru.com.br
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