Nas ruas da capital argentina, na semana passada, só uma imagem rivalizava com a de Carlos Menem e sua máscara entupida de botox: os cartazes do V Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente (Bafici). Seria um exagero dizer que a festa cinematográfica atraía mais atenções que o iminente primeiro turno das eleições presidenciais, mas a relativa indiferença e o visível desânimo com que os argentinos encaravam o futuro político do país contrastavam vivamente com o interesse do público pela estimulante programação do festival.
Mais de 200.000 pessoas (35% a mais que no ano anterior) compraram ingressos a 4 pesos (o equivalente a 4 reais) para ver não os novos hits do cinema de massas, nem mesmo o cardápio habitual do circuito mais chique. As maiores atrações do Bafici eram assinadas por nomes legitimamente alternativos como o francês F.J. Ossang (chamado de “o último cineasta do rock”), os alemães Peter Mettler e Harun Farocki, o novo cinema gay chinês, pérolas coreanas, tailandesas, indianas etc. Além, é claro, do jovem cinema argentino. O Brasil apresentava oito títulos na mostra Foco Brasil e concorria com Madame Satã. Ganhou apenas uma menção especial para a fotografia de Walter Carvalho.
A política cruzava o caminho dos festivaleiros a todo momento. Desde a cerimônia de abertura, realizada informalmente no enorme pátio do shopping Abasto, sede do festival e principal complexo de exibições, ocupando oito salas do impecável multiplex Hoyts General Cinema. Um contingente de “piqueteros” (manifestantes políticos) levou seus cartazes e gargantas incansáveis para protestar diante do governador de Buenos Aires, que fazia as honras da casa, a ponto de quase inviabilizar os discursos de inauguração. A presença do movimento piquetero estendeu-se na mostra A Volta da Revolta, que reuniu vídeos militantes de produção recente.
No dia em que corria a notícia da prisão em Bagdá do terrorista Abu Abbas, mentor do seqüestro do navio Achille Lauro, o festival apresentava a adaptação da ópera The Death of Klinghoffer, de John Adams, que trata justamente daquele episódio. O filme de Penny Woolcock, uma uruguaia radicada em Londres, é integralmente cantado e mescla a história do seqüestro com flashbacks e materiais de arquivo sobre as escaramuças entre judeus e palestinos ao longo do século 20. O efeito é incômodo e poderoso, mas o filme saiu de mãos vazias. O mesmo aconteceu com Rana’s Wedding, de Hany Abu-Assad, uma espécie de Corra, Lola, Corra ambientado em Jerusalém, onde a protagonista tem que superar todas as dificuldades do cotidiano palestino para se casar antes que o dia termine.
O grande vencedor do Bafici, já conhecido do público de festivais brasileiros, foi Heremakono – À Espera da Felicidade, do mauritano Abderrahmane Sissako. Mas o diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul também fez bonito: seu deslumbrante Blissfully Yours (exibido no último Festival do Rio com o título traduzido para Eternamente Tua) levou o prêmio de direção e o prêmio Fipresci, da crítica internacional. Blissfully Yours é de uma originalidade a toda prova, muito embora críticos tenham encontrado ecos de Tsai Ming-Liang e Jean Renoir.
O filme é dividido em duas partes por uma canção de Tom Jobim cantada em tailandês. Na primeira, urbana, conhecemos os três personagens principais: Min, um imigrante ilegal de Mianmar, sua namorada Roong e uma mulher mais velha, Orn, contratada para tomar conta de Min. O rapaz tem uma doença de pele e precisa ficar calado para não denunciar sua origem. Roong e Orn tentam em vão obter um atestado médico para Min. Em seguida, rumam todos para uma tarde de descanso no campo. Orn também leva um namorado. Em comunhão com a natureza, os insetos e as frutas selvagens, diante de vastas paisagens do norte tailandês, essas quatro figuras conquistam momentos de plenitude panteísta, onde sexo, comida, silêncio e bem-estar parecem suspender o tempo, fonte de todo sofrimento. Poucas vezes no cinema contemporâneo a concepção hedonística da vida asiática foi tão bem representada.
Em matéria de sentimento nacional, os novos filmes argentinos deram o que pensar. Nenhum refletiu os graves problemas sociais por que vive o país hoje. A ditadura militar continua sendo o tema político preferido, especialmente pelo aspecto da orfandade. O pesado e reflexivo Potestad, de César D’Angiolillo, tecnicamente irretocável, trata do complexo de culpa de um velho médico que servia ao regime e adotou a filha de vítimas da repressão. Já o documentário Los Rubios, de Albertina Carri, trata da busca de informações sobre o pai da realizadora, um ativista morto pelos militares. Albertina aparece em cena orientando uma atriz que faz o seu papel na construção do documentário. O dispositivo funciona até o ponto em que vira fetiche metalingüístico.
Afora isso, a maioria dos filmes argentinos enfocava personagens à deriva, jovens ou mais velhos, descoordenados no tempo e no espaço, tateando um sentido para a vida. Tudo muito sintomático do estado do país, mas também informativo sobre a demanda do público, que não parece interessado em ir ao cinema para se confrontar com as dificuldades do dia a dia. Nessa apatia cinematográfica alimentada de parte a parte, um toque de frescor foi dado por Ana y los Otros, longa de estréia de Celina Murga, que conta o retorno de uma jovem à cidade natal depois de vários anos vividos em Buenos Aires. À fina observação da conduta sentimental da província soma-se um ótimo controle de expectativas à medida que a protagonista tenta localizar um antigo namorado – raro ato de vontade no contexto de letargia geral. Os diálogos de Eric Rohmer e as deambulações de Abbas Kiarostami não são estranhos às influências de Celina Murga.
A prata da casa brilhou com intensidade ainda maior no documentário Yo no Sé que me han Hecho tus Ojos, dirigido por Lorena Muñoz e o crítico e professor de cinema Sergio Wolf. Eles resgataram do esquecimento a cantora de tango Ada Falcón, uma musa dos anos 1930 que, após uma decepção amorosa com o famoso maestro Francisco Canaro, interrompeu a carreira, distribuiu sua fortuna aos pobres e virou freira em 1942. Durante 60 anos, ninguém se importou muito com o paradeiro de Ada. Os realizadores a descobriram num distante mosteiro em 2002, poucos meses antes de sua morte. Para recompor sua trajetória, usaram magistralmente trechos de filmes de ficção argentinos, enquanto o próprio Sergio Wolf, brincando de detetive de filme noir, conduziu na frente da câmera esse misto de paixão cinefílica e investigação documentária. O filme encantou ao público e à crítica, merecendo o prêmio da Fipresci de melhor obra latino-americana do festival.
Enquanto a nostalgia e a apatia davam o tom dos filmes argentinos, os portenhos se preparavam para escolher o próximo presidente. Pelo que se ouvia em Buenos Aires, os votos para Menem viriam todos das províncias, de eleitores ignorantes ou iludidos pelo mito da “outra oportunidade”. Muita gente anunciava o voto em Lula, uma forma de anulação que incorporava o elogio a uma esperança fora do seu alcance. Na semana passada, a Argentina estava deprimida como um drama de Mike Leigh.
Carlos Alberto Mattos integrou o júri da crítica internacional (Fipresci) no festival de Buenos Aires