Críticas


NELSON FREIRE

De: JOÃO MOREIRA SALLES
02.05.2003
Por Carlos Alberto Mattos
PACTO DE DISCRIÇÃO

Nelson Freire é simples como o próprio título. Um projeto quase rudimentar de documentário, que consiste em acompanhar o artista em alguns momentos de sua vida pública e privada, para com esses fragmentos dar uma idéia de sua personalidade e importância. O que distingue, afinal, o novo filme de João Moreira Salles é justamente o compromisso com essa simplicidade. É a maneira como retrato e artista se integram num pacto de discrição e recusa ao espetaculoso. Pode-se dizer, a título de elogio, que Nelson Freire é a cara de Nelson Freire.



A excelente qualidade sonora contrasta, em certa medida, com as imagens granuladas, às vezes até toscas. Nada de muito preparado e limpo, como nos trabalhos dos anos 1980, época em que os irmãos Salles abriam espaços na TV armados de um certo rigor formal e um tanto de sedução audiovisual. Aqui vale mais a espontaneidade da câmera, mesmo na filmagem dos concertos, sua capacidade de reagir empiricamente ao comando da música ou das situações. Chega a haver movimentos trôpegos, hesitações normalmente retiradas na montagem, mas aqui deixadas como que para sublinhar o caráter imperfeito do documento. O filme não quer se colocar acima do “personagem”, assim como Freire recusa-se a posar de estrela acima da própria música.



A inspiração para a estrutura em mosaico vem, certamente, de um outro filme sobre pianista famoso: 32 Curtas sobre Glenn Gould, do canadense François Girard, realizado há exatos dez anos. João Moreira Salles e Felipe Lacerda (o talentoso editor de filmes de Walter Salles e co-autor de Ônibus 174) organizaram o filme em 31 blocos temáticos, que podem variar de um movimento de concerto ou recordações familiares até uma rápida observação sobre um hábito ou um contratempo vivido por Nelson Freire. Não há depoimentos e raros são os momentos de entrevista formal. A história da infância doentia e da projeção do menino-prodígio chega ilustrada por uma carta do seu pai (lida magistralmente em off por Eduardo Coutinho). Da mesma forma, a paixão pela primeira professora de piano, Nise Obino, vem a bordo de outra carta, igualmente emocionante.



Na maior parte do tempo, Salles e seus cinegrafistas adotam o modelo do cinema direto, tentando captar o movimento “normal” do cotidiano de Freire. Nos ensaios e apresentações, essa é a regra, sem problemas. O artista está tomado pela música e a câmera é naturalmente abstraída. Mas nos flagrantes de cotidiano, nem sempre o filme consegue plasmar a desejada “impressão de verdade”. Isso funcionou muito bem com estrelas pop como Bob Dylan e Mick Jagger em clássicos do cinema direto da década de 1960. Deu certo, recentemente, com Woody Allen in Concert, enfocando alguém que é muito mais ator do que músico. Não é o caso de Nelson Freire. Sua timidez, seu desconforto e a completa falta de naturalidade diante da câmera geram mais embaraço que momentos reveladores. Quando ele tenta estabelecer diálogos com Martha Argerich em torno dos teclados e de sua longa amizade, o constrangimento soa mais alto do que qualquer acorde. A busca de alguma intimidade acaba informando apenas sobre os limites da própria exposição. É onde Nelson Freire demonstra maior fragilidade e uma certa inadequação de meios.



O filme é melhor resolvido quando se propõe revelar o artista através da montagem. Nelson aparece como uma espécie de eixo fixo em torno do qual se movem os palcos e as platéias do mundo. Uma linha de continuidade flagra pormenores de seu comportamento nos ensaios, coxias e camarins. Expõe sua doce resignação no contato com os fãs e repórteres de televisão. Ilustra seu domínio absoluto das teclas em performances interligadas no Brasil e em diversas cidades européias, conectadas através de uma habilíssima edição visual e sonora que põe em destaque, ainda, belos exemplos de arquitetura teatral. O ensaio do Concerto no. 2 de Rachmaninoff, durante sua primeira apresentação na Rússia, ocupa posição central no filme, servindo para mostrar o humilde nervosismo que ainda pode afetar um intérprete portentoso como ele.



Primeiro filme de João Moreira Salles a ser lançado em salas de cinema, Nelson Freire recusa o brilho fácil e procura ser fiel ao simpático retraimento de seu “personagem”. O cinema como veículo de vaidades não tem lugar. Reina, absoluta, a grande música, razão maior de todo o projeto.



# NELSON FREIRE

Brasil, 2003

Direção: JOÃO MOREIRA SALLES

Produção: VIDEOFILMES

Argumento: FLÁVIO PINHEIRO

Roteiro: JOÃO MOREIRA SALLES, FELIPE LACERDA E FLÁVIO PINHEIRO

Fotografia: TOCA SEABRA

Edição: FELIPE LACERDA E JOÃO MOREIRA SALLES

Som direto: ALOYSIO COMPASSO

Gravação de concertos: DENILSON CAMPOS, GABRIEL PINHEIRO, LIONEL PAUTY

Produção executiva: MAURICIO ANDRADE RAMOS

Duração: 102 minutos



Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo de 07.04.03

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