O Oscar fez com que, afinal, um longa-metragem de Michael Moore fosse lançado comercialmente no Brasil. E com sucesso já garantido, a crer nas sessões de festival e pré-estréias. Até hoje é difícil acreditar como o super-panfleto de Moore quebrou a longa tradição de prêmios da Academia a documentários curativos do Holocausto dos judeus. Tiros em Columbine é um antípoda daquele tipo de documentário redondo, com tema sedimentado no passado e na consciência universal, que ajudou a carrear para o gênero a reputação de um cinema da ética e da verdade, em oposição ao filme de ficção.
Moore não é o intelectual que observa, nem o missionário que corrige, nem o artista que retrabalha a realidade à sua volta. Ele não sai do seu meio para documentar o desconhecido, atitude mais comum entre seus pares. Em cada momento de Tiros em Columbine, Moore faz questão de inserir-se no quadro da cultura em que vive e trabalha. Ele é o americano típico, de jeans, tênis e boné de beisebeol, que se preocupa com os destinos do seu país. Já no início do filme, insere filmetes familiares que o mostram ganhando sua primeira arma de brinquedo. Exibe sua carteirinha de sócio da National Rifle Association. Aborda seus entrevistados sem dissimular sua condição de estrela da mesma mídia que critica como mantenedora de um estado de coisas que abomina. Não disfarça, tampouco, que lhe interessa vender mais livros, mais ingressos de cinema e mais DVDs. Ou que mais gente acesse sua página na internet (www.michaelmoore.com), uma espécie de portal dos descontentes.
Moore faz um tipo de documentário impuro, que utiliza recursos da dramaturgia de ficção, do cinema militante e do entretenimento televisivo para confrontar questões incômodas da vida americana. É um performer de traços bem definidos (gordo, feio, insistente, fisicamente inábil) que se coloca em contraste com um país que se quer bonito, “sarado”, bem dotado e autoconfiante. Não hesita em apelar para a ironia (tanto na linguagem oral como na cinematográfica), o chiste vexaminoso (levar garotos feridos à bala para devolver a “mercadoria” ao supermercado) e o constrangimento do entrevistado (mostrar a foto de uma menina assassinada a Charlton Heston e exigir dele um pedido de desculpas por seus comícios pró-armamento).
Por conta disso, correm muitas críticas ao seu trabalho. Entre outras coisas, por manipular a montagem dos filmes, inserindo imagens que não correspondem ao momento filmado. Em Tiros em Columbine, por exemplo, quando Heston abandona a entrevista pelo meio, Moore aparece mostrando-lhe a foto da menina de um ângulo que seria impossível de captar naquele instante. Quando ele volta ao supermercado para “devolver” as balas alojadas nos corpos dos garotos, “dessa vez com a mídia”, não dá para acreditar plenamente naquele pessoal que empunha câmeras e microfones. A distância entre performance e documentação estrita é muitas vezes indefinida. Pode não ser defensável por um código de ética que presidiria o documentário, mas não deixa de ser válido se pensarmos que o objetivo de Moore é mais uma ação política que um retrato purista da realidade.
Ele está atrás de pequenas vitórias simbólicas – fazer com que a rede de supermercados cesse de vender munição, provocar uma crise de consciência numa celebridade conservadora etc. No caminho, abre um leque de perguntas sobre a macro-estratégia da extrema direita americana. Se nos longas anteriores, Roger and Me e The Big One, seu alvo era mais precisamente a América das grandes corporações, Tiros em Columbine amplia o foco para atingir outras instâncias, ou seja, o eixo paranóia-consumo-guerra levado a extremos pelo governo Wild Bush. Moore parte de uma estatística (mais de 11.000 pessoas morrem assassinadas por arma de fogo anualmente nos EUA) e de duas tragédias escolares cheias de pathos por envolver a morte de crianças.
Ele não tem respostas prontas para a pergunta que se faz: por que se mata tanto nos EUA? Sai atrás de respostas: será a violência do cinema? A violência da História? A facilitação do porte de armas, a ponto de bancos oferecerem rifles como brinde a novos clientes? A ampla difusão do conceito de cidadania armada? A constante incitação do medo contra negros, árabes, hispânicos etc? Cada uma dessas hipóteses é discutida com jovens anônimos, xerifes, milícias, jornalistas, artistas. Para algumas, Moore responde por conta própria. Faz um clipe magnetizante de atrocidades internacionais cometidas pelos EUA ao som de It´s a Wonderful World, que lembra os grandes momentos do documentarista cubano Santiago Alvarez. Mais adiante, força uma comparação com o pacífico Canadá, obtendo um efeito poderoso, embora superficial.
Michael Moore movimenta-se no mundo do espetáculo e a ele não renuncia só porque tem uma perspectiva crítica. O papel que ele assumiu, principalmente depois da afronta à censura hollywoodiana na noite do Oscar, é o de um paladino da oposição a Wild Bush e a tudo o que ele representa. É claro que foi preciso coragem, mas Moore já descobriu como usar as forças do sistema para proteger sua garganta contra o silenciamento e a guilhotina profissional. Esta talvez seja a sua maior contribuição ao cinema e à sociedade: transformar-se num libelo vivo contra o medo.
As cenas que mais freqüentemente encontramos nos filmes e programas de TV de Michael Moore são suas renitentes tentativas de entrar em lojas, clubes privados e sedes de grandes empresas, acompanhado por cinegrafista e técnico de som. Vemo-lo ser seguidamente barrado por seguranças, expulso de prédios, ter portas de escritórios e janelas de carro fechadas na sua cara rotunda e invasiva. Consta num site de bastidores a informação de que, após a entrevista com Charlton Heston, ele teve que se virar contra seguranças para salvar a fita, atirando-a por sobre um muro, enquanto entregava um cassete vazio.
Repetindo essa conduta ao longo de toda a década de 1990, Moore construiu uma platéia e uma imagem que o tornam cada vez menos vulnerável a pressões e agressões de empresários e políticos. Moore colocou a noção de liberdade de imprensa e respeito ao jornalista a favor de uma causa nobre. E não se cansa de projetar seu exemplo. Em abril, publicou no seu site uma mensagem em que exortava os artistas americanos a não se intimidarem com as ameaças de boicote surgidas com o neo-maccarthismo da era Bush. Citou o aumento de vendas de seu livro Stupid White Men, o crescimento do público de Tiros em Columbine e das visitas ao seu site após a malcriação no Oscar. “Façam ouvir suas vozes”, conclamava.
Talvez, no fundo, o “pentelho” Moore almeje mesmo ser visto como um herói, porta-voz da insatisfação dos homens de bem numa América vilipendiada. Mas sua posição é bem mais complexa do que isso. Ele quer também ser uma história de sucesso. O bem não deixa de constituir um mercado. Moore é um fruto dessa aparente contradição, daí sua riqueza para pensarmos o mundo de hoje. Sem medo.
Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo de 16.05.2003
TIROS EM COLUMBINE (Bowling for Columbine)
Direção, produção e roteiro: Michael Moore
Câmeras: Brian Danitz, Michael Mcdonough, Ed Kukla
Som: Francisco Latorre, James Demer
Montagem: Kurt Engfehr
Edição de som: Joe Caterini
Música: Jeff Gibbs
Pesquisa: Elizabeth Marcus, Nicky Lazar, David Schankula, Catherine Johnston
Pesquisa de arquivos: Amy McCampbell, Aneetha Rajan
EUA, 2002, 93 minutos
Site do filme: www.bowlingforcolumbine.com