Em 1988, uma forte pressão, nacional e internacional, leva a temível ditadura chilena, do general Augusto Pinochet, instalada desde 1973, a convocar um plebiscito sobre a necessidade ou não de realização de eleições diretas no país. Seguros de sua vitória, os militares entram na campanha bafejados pelos bons índices eleitorais sem saber que ali plantava-se o sêmen de sua derrocada.
Exibido na Quinzena de Realizadores do 65º Festival de Cannes, No, de Pablo Larraín, aborda os bastidores do marketing político da que pode ser considerada a votação mais decisiva da história da democracia latino-americana da segunda metade do século XX. Se Brasil e Argentina já haviam dado um basta nos regimes autoritários, faltava ao Chile, no final da década de 80, dar o não que consolidaria o início de uma nova era política ao sul do Equador.
Inspirado na peça Referendum, de Antônio Skármeta, autor da novela O Carteiro e o Poeta, No aborda esse momento de transição sob a ótica do elemento que transformaria fundamentalmente a relação entre eleitor e voto: o marketing político. Rene Saavedra (Gael Garcia Bernal, preciso) é um criativo de uma agência de publicidade em ascensão que recebe o convite para dirigir a campanha do NO à permanência do regime militar. Filho de expressivo dissidente político, Rene transita no fio da lâmina entre a visão progressista da esposa e dos amigos de seu pai, e a cautelosa postura do dono da agência em que trabalha, cuja proximidade com o regime e com a campanha do SÍ não o impede de olhar para o futuro. Menos pelo bem da democracia; mais pela necessária adaptação do seu negócio aos novos tempos.
No, o filme, vai fundo nas entrelinhas paradoxais dessa batalha midiática pelo poder. A opção narrativa por uma fotografia de cores mal ajustadas, sobrepostas, mimetiza os efeitos da textura das fitas de vídeo dos anos 70. De início, o espectador desavisado, como eu, pode achar um defeito na projeção ou na cópia. Mas logo se entende que o defeito é efeito de linguagem para contextualizar e fortalecer os intuitos desse ótimo, e formalmente corajoso, filme.
Embora se passe há 35 anos, No sustenta-se com fortes elementos de filme de época que nos lembram com naturalidade (mérito da produção) o quanto o mundo mudou em pouquíssimas décadas. Os elementos que compõem o décor parecem saídos de um museu de estranhas novidades. São televisores, fitas U-matic, carros e até um microondas a nos projetar para um mundo tão perto, tão longe.
As discussões sobre o formato de campanha - com ênfase na rejeição às mudanças do sisudo discurso de esquerda em face aos atrativos elementos da nova publicidade - compõem registros de um novo mundo em que, por exemplo, as canções de protesto, e seu apelo panfletário, cedem à vulgaridade dos jingles descartáveis que colam como chiclete no ouvido do inconsciente popular.
Pablo Larraín carimba sua condição de grande nome do cinema chileno contemporâneo. Seu nome também aparece como produtor de outro filme da pátria presente aqui em Cannes, Joven y Alocada. Como autor, chega à maturidade em seu quinto filme, no qual completa a trilogia do Chile pós-73. Do irregular Tony Manero aNo, passando pelo denso Post Mortem, Larraín exibe talento ao transitar pelo humor, pela introspecção e agora pelo thriller político, com perspectiva histórica mas sem denuncismo. Como o protagonista Rene, seu cinema tem na observação e na entrega com ressalvas aos ditames da nova ordem mundial as chaves para questionar o sistema de dentro, sem a ele se render. É possível? Os filmes de Pablo Larraín, sem proselitismo, provam, que à revelia dos extremos, sí.