Críticas


FESTA NUNCA TERMINA, A

De: MICHAEL WINTERBOTTOM
Com: STEVE COOGAN, SHIRLEY HENDERSON, SEAN HARRIS, PADDY CONSIDINE
13.06.2003
Por Marcelo Janot
FÁBRICA DE SONHOS E MITOS

Embora a popularidade do gênero documentário nunca tenha sido tão grande no Brasil e no exterior, muita gente anda ressabiada depois da repercussão mundial dos supostos casos de “manipulação” cometidos pelo cineasta Michael Moore em Tiros em Columbine e pelo jornalista Martin Bashir no polêmico documentário televisivo Living With Michael Jackson. Uma discussão relevante pelo lado ético mas um tanto quanto mesquinha do ponto de vista artístico, porque nenhum documentário, seja qual for seu estilo, traz a verdade única. Felizmente, A Festa Nunca Termina, o filme de Michael Winterbottom que radiografa a importância da cidade de Manchester e da gravadora Factory no cenário musical dos anos 80/90, escapa dessa polêmica.



A Festa Nunca Termina é esperto o suficiente para funcionar muito bem como filme de ficção e ser ao mesmo tempo um importante documento. Com atores interpretando personagens verdadeiros, e preservando seus nomes originais, o filme consegue retratar com fidelidade os acontecimentos que marcaram a cena de Manchester e a trajetória de seus protagonistas. Mas seu mérito maior é o de conseguir captar a atmosfera musical, humana e profissional que pairava sobre aquela região industrial inglesa.



O filme está estruturado em cima de três figuras-chave: o pilar central é Tony Wilson, um dos fundadores da gravadora Factory (de onde surgiram grupos como Joy Division, New Order e Happy Mondays) e do club Hacienda (um dos berços da cultura rave dos anos 90); ao redor dele, se destacam, no primeiro ato, Ian Curtis, líder do Joy Division, e, no segundo ato, Shaun Ryder, líder do Happy Mondays. Wilson é o narrador e muitas vezes se dirige diretamente à câmera para intervenções britanicamente bem-humoradas, um recurso criativo bem explorado pelo roteiro.



Para entender porque a primeira parte do filme é melhor que a segunda, basta ter noção do abismo de qualidade que separa o Joy Division do Happy Mondays. Ian Curtis era um gênio que se matou em 1980, aos 24 anos, deixando um legado de apenas dois discos de carreira e um punhado de letras assustadoramente poéticas e proféticas. Caso o Joy Division tivesse embarcado para sua primeira turnê pelos Estados Unidos, em viagem que estava marcada para dois dias depois que o cantor se enforcou, Curtis provavelmente seria mais conhecido do que Kurt Cobain, o líder do Nirvana que conheceu o sucesso internacional para só depois se matar.



Então um dos méritos de A Festa Nunca Termina é justamente esse, o de mostrar a um público mais amplo que Ian Curtis não foi apenas “aquele sujeito que dançava esquisito, tinha ataques epiléticos no palco e morreu para que sua banda virasse o New Order”, como é comum ouvir por aí. Curtis era um homem depressivo, extremamente obcecado com a idéia de morrer cedo, mas de enorme talento, e embora o filme não vá mais fundo principalmente na sua tumultuada vida pessoal (vivia um casamento fracassado com Deborah, sua namorada de longa data, com quem tinha uma filhinha de um ano, e mantinha uma amante em Londres), a performance do ator Sean Harris como Curtis é irretocável. E o final desse primeiro ato, com o videoclipe póstumo da música Atmosphere, do Joy Division, é emocionante, de arrepiar.



Para quem é fã do Joy Division/New Order, o filme tem momentos bastante interessantes. Por exemplo, mostra a grande sacada do produtor Martin Hannett de colocar o baterista Steve Morris tocando no telhado do estúdio, durante as gravações do disco Unknown Pleasures, para obter um som diferenciado da bateria, e que se tornaria uma das marcas registradas da banda. Outra curiosidade é a relação de Curtis com os outros integrantes do grupo. Parecia que o vocalista Bernard Sumner era o único realmente amigo dele, e o filme dá algumas “cutucadas” no baixista Peter Hook: debocha do seu jeito de tocar baixo, dá ênfase à cena (verdadeira) do episódio em que Curtis estava tendo um ataque epilético enquanto Hook só queria saber de arranjar um cigarro, e por fim não mostra o baixista no funeral do ex-companheiro.



O fato é que, fora das telas, nos últimos anos a relação entre os integrantes do New Order e seu ex-patrão Tony Wilson não tem sido das melhores, o que explica porque o segundo ato do filme é muito mais centrado no Happy Mondays do que no New Order. Apesar de ser uma banda competente, o Happy Mondays chamava a atenção menos pela música e mais por ter um vocalista doidão e um outro integrante que não fazia outra coisa no palco a não ser ficar pulando de um lado para o outro para animar o público.



Embora no filme o talento literário do cantor Shaun Ryder seja comparado ao do poeta W.B. Yeats (um exagero!), sua função maior é a de mostrar o nível de romantismo e amadorismo que regia uma das mais importantes gravadoras do mundo, já que Wilson e seus sócios se afundavam cada vez mais enquanto cediam aos caprichos de Ryder e cia. Coisas de um tempo em que o profissionalismo já se fazia necessário, mas não de forma tão imperativa a ponto de impedir que um empresário idealista pudesse realizar seu sonho. Um sonho que só acabou quando, na balança de Manchester, o business passou a ter mais peso que a arte.



# A FESTA NUNCA TERMINA (24 HOUR PARTY PEOPLE)

Inglaterra, 2001

Direção: MICHAEL WINTERBOTTOM

Roteiro: FRANK COTRELL BOYCE

Produção: ANDREW EATON

Fotografia: ROBBY MULLER

Montagem: TREVOR WAITE, MICHAEL WINTERBOTTOM

Elenco: STEVE COOGAN, SHIRLEY HENDERSON, SEAN HARRIS, PADDY CONSIDINE, DANNY CUNNINGHAM

Duração: 115 min.

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