Especiais


FESTIVAL DE BERLIM 2013 (II)

16.02.2013
Por Nelson Hoineff
Nelson Hoineff comenta os filmes exibidos no Festival de Berlim 2013

HÉLIO OITICICA

Direção - Cesar Oiticica Filho

Fórum



Muitos documentários brasileiros recentes têm se ocupado do tropicalismo ou de sua era. É um resgate importante – por mais que o termo esteja desgastado – de um notável momento da vida cultural brasileira. Hélio Oiticica nunca foi um tropicalista, como ele mesmo diz numa das cenas utilizadas para o filme que seu sobrinho Cesar Oiticica Filho fez sobre ele, mas é muito possível que tenha cunhado o termo tropicália, como ele também apregoa.

Hélio foi uma personalidade difícil, enigmática, multifacetada. Conheci-o numa época em que muitos eram assim, inclusive um jovem cineasta que me apresentou ao artista, Luiz Otavio Pimentel, morto prematuramente antes de completar 30 anos. Morrer antes dos 30, ou pouco depois disso, não era incomum para garotos que viviam com essa intensidade. Oiticica era ansioso, transtornado, arrogante, errático. Tornou-se um dos maiores artistas brasileiros porque sua obra foi capaz de expressar tudo isso. Hélio Oiticica só tinha a opção do radicalismo e é curioso ver como as grandes expressões do tropicalismo, Gil e Caetano, parecem comportadas colocadas ao seu lado.

O parceiro Neville d´Almeida tem feito um intenso mergulho em sua obra. Aqui mesmo, em meio ao Festival de Berlim, duas ações simultâneas ocorrem no campo das artes plásticas. Por isso, Cesar refere-se ao seu filme como parte de um processo, nada mais do que isso.

Boas coisas têm sido escritas sobre Oiticica. Há uns 30 anos, talvez um pouco mais, Ivan Cardoso fez um ótimo curta-metragem sobre ele. O documentário feito agora por Cesar Oiticica Filho, já premiado no Festival do Rio, caminha na direção oposta à de Ivan. É fartamente pesquisado e se apóia numa veia contemplativa, quase jornalística. Há uma grandeza nisso: o diretor não compete com seu biografado e, não inventando o que não deve ser inventado, contextualiza adequadamente o artista e sua obra. Cesar, apesar de muito jovem, claramente entendeu a obra e o tempo de seu tio. Não hesita em levar para a tela momentos essenciais, mesmo que a imagem ou o som estejam comprometidos. Evita perder-se em depoimentos reiterativos para se concentrar no que melhor expressa Hélio Oiticica: o próprio Hélio. É um filme revelador, honesto e plenamente satisfatório sobre um artista brasileiro como poucos, um visionário que ainda está por ser plenamente descoberto.



ANTES DA MEIA NOITE (Before Midnight)

Direção - Richard Linklater

Fora de Competição



Em 1995, Antes do Amanhecer ganhou, para Richard Linklater, o Urso de Prata em Berlim. Nove anos depois, Linklater participou outra vez da competição, com Antes do Pôr do Sol. Chegou a vez agora de Antes da Meia-Noite, uma ameaça de que as banais conversas de amor entre seus personagens não têm fim. Linklater é uma espécie de Domingos Oliveira 30 anos mais jovem. Parece gostar tanto de conversar sobre as aventuras de amor, mas entender menos do assunto, do que o cineasta brasileiro.

No primeiro filme, o americano e a francesa se encontravam num trem a caminho de Viena. Em Antes do Pôr do Sol todos estavam em Paris. Já em Antes da Meia Noite, as conversações acontecem numa paradisíaca mansão grega, onde o mesmo casal se encontra, agora com suas filhas. Repetem a mesma sucessão de diálogos pretensiosos, banais e incomodamente desprovidos de verdades, agora um pouco envelhecidos. A filosofia que destilam é rasteira, primária, às vezes constrangedora. Suas tolices sobre a vida não respeitam a paisagem. Se a série é promovida por alguma entidade de turismo, ela está aplicando o seu dinheiro. As locações são onde muitos gostariam de estar. Mas, se possível, em melhor companhia.



A MELHOR OFERTA (The Best Offer)

Direção - Giuseppe Tornatore

Berlinale especial



Em 1998, Tornatore surpreendeu o mundo com seu Cinema Paradiso, até hoje uma controversa referência sobre o cinema de amor ao cinema. De lá para cá, seu trabalho deu munição aos que viam naquele grande sucesso nada mais do que um engodo. A Melhor Oferta gira em torno de um sofisticado diretor de uma casa de leilões - inspirada quadro a quadro na Sotheby´s - que vive uma vida serena até ser atormentado pelo que supõe ser o amor por uma mulher.

Com mais de 50 anos, o leiloeiro Virgil Oldman (Geoffrey Rush) jamais esteve com uma mulher. Ele vive uma vida de intenso luxo e conserva para si mesmo uma impressionante coleção secreta de arte composta de quadros que, no momento da venda, ele sub-avaliou. Oldman veste-se impecavelmente (tem uma incrível coleção de luvas, que escolhe meticulosamente antes de sair) e naturalmente frequenta os melhores restaurantes. Quando uma misteriosa mulher intromete-se em sua vida, ele vai descobrindo os encantos que isso pode representar. Não é para menos. A mulher é a sensacional Sylvia Hoeks, que se mantém incógnita até que o marchand faça tudo para encontrá-la.

Tudo é naturalmente um golpe, mas nada comparado ao primarismo do filme de Tornatore. Rush comporta-se como um Rex Harrison em My Fair Lady, sem música nem encantamento. É difícil identificar se o que Tornatore traz a Berlim é um drama ou uma comédia. Trata-se de um thriller banal, com belos quadros e belas casas. O resto é puro divertimento.



CAMILLE CLAUDEL 1915

Direção - Bruno Dumont

Competição



Entre as muitas mistificações promovidas com frequência pelo cinema francês, Bruno Dumont é certamente um destaque. É difícil entender o que se pode extrair de filmes como A Vida de Jesus (1997) ou A Humanidade (1999). Sua nova versão para a história de Camille Claudel, exibida em competição em Berlim, repete a dificuldade angustiante que tem para filmar. Sua câmera parece pesar uma tonelada; seus personagens são esboços; seus atores são angustiantemente ruins. Aqui, a pobre Juliette Binoche trafega com dificuldade entre dezenas de careteiros amadores, confinados no asilo em que a artista passou grande parte de sua vida.

O que a família fez com a amante de Rodin é pouco comparado ao que Dumont faz com ela. O diretor coloca ao seu redor doentes mentais de verdade - o que é moral e eticamente desprezível - e reduz a história a sua relação com o irmão Paul, em cujas cartas o filme se inspira. Dumont goza de um prestígio incompreensível em vários festivais, inclusive Berlim, mas é difícil acreditar que mesmo assim o cinema francês esteja aqui representado por um filme como esse - mesmo numa cinematografia que tem Intocáveis como o maior sucesso do ano.



STEMPLE PASS

Direção - James Benning

Fórum



James Benning é um dos mais ousados e instigantes documentaristas contemporâneos. Desde que começou a filmar, nos anos 70, seus documentários expressam a preocupação permanente com as formas e as possibilidades do cinema. São filmes em grande parte percepcionistas, que lidam com os limites do espectador e o levam a, na pior das hipóteses, ler o quadro de uma maneira diferente da que foi acostumado a fazê-lo.

Stemple Pass, apresentado no Fórum de Berlim, é a radicalização disso tudo. Em pouco mais de duas horas de duração, o filme tem apenas quatro planos - feitos do mesmo lugar e com o mesmo ângulo. Quatro planos de pouco mais de meia hora, colhidos em quatro estações diferentes do ano, onde a câmera não se move e praticamente nada se move.

O que se move é a imaginação do espectador, o olhar do leitor, no qual Benning está tão interessado quanto no olhar da câmera. Mais um filme admirável entre as dezenas que este cineasta fora da curva vem realizando há mais de quarenta anos. Filmes que não serão vistos fora do circuito de festivais, mas pelos quais vale a pena correr meio mundo.



A NECESSÁRIA MORTE DE CHARLIE COUNTRYMAN (The necessary death of Charlie Countryman)

Direção – Fredrik Bond

EUA – Competição



Um dos principais representantes dos EUA na competição em Berlim é a obra de estreia de seu diretor, Fredrik Bond. Nascido na Suécia, Bond trabalha na Inglaterra desde os anos 90. Desconhecido no mundo do cinema, é aparentemente um superstar no universo da publicidade. Ele é autor de comerciais premiados no mundo inteiro para marcas como Budweiser, Levis, Nike, Adidas e Puma.

Aqui, seu personagem – vivido por Shia LaBoeuf – fala com os mortos. Fala com a mãe, que morreu, e com um desconhecido, que morre no seu ombro num avião. Isso é o que de menos estranho lhe acontece. Charlie está indo para Bucareste, porque sua mãe lhe pediu que fizesse isso – na verdade, a morta se enganou; queria dizer Budapeste – e lá o que acontece em sua vida é mais inesperado do que tudo o que pode ocorrer num comercial de cerveja. Charlie se envolve em redes criminosas e, de uma forma muito especial, numa anti-paixão pela filha do desconhecido (Evan Rachel Wood), uma relação que simplesmente não faz sentido, como se alguma relação o fizesse.

Dirigido com grande requinte técnico, A Necessária Morte de Charlie Countryman é um filme fora do comum, para dizer o mínimo. Afinado com a contemporaneidade, repleto de citações inteligentes a filmes como Pulp Fiction, Trainspotting e a serie James Bond, essa é uma obra inquietante, incomoda, certamente polêmica, que vai despertar ódios e paixões – certamente menos paixões do que ódios – porque é mobilizadora, inovadora, as vezes de difícil digestão. Draminhas pungentes, mães procurando filhos, filhas que se orgulham dos pais não fazem parte do seu universo. O só isso já bastaria para fazer de A necessária morte de Charile Countryman um filme muito, mas muito acima da média.



TERRA PROMETIDA (Promised Land)

Direção – Gus Van Sant

EUA – Competição



Visto de longe, Terra Prometida é um thriller político sobre um conflito ecológico atual. Visto de perto também. Uma grande empresa tem que persuadir os habitantes de um pequeno vilarejo rural nos EUA a permitir a instalação de uma fábrica de gás natural no seu território. É uma questão controversa, porque há sinais de que o método a ser implantado – fracking - possa ser danoso para a terra, o gado e as pessoas que vivem lá.

O encarregado de persuadir a população é Steve Butler (Matt Damon), que encontra inicialmente a oposição de um velho e respeitado professor e, mais tarde, de um jovem ativista (John Krasinski, Frances McDormand). Butler mente, usa estratagemas pouco éticos, mas esta seguro do que veio fazer nessa remota zona rural. Contudo, a realidade em sua volta vai aos poucos ganhando novos contornos.

Gus Van Sant aproxima o olhar da sua trama, mas é sobretudo um cineasta capaz de se aproximar de seus personagens. Tem a habilidade de agarrá-los, não deixar que eles lhe escapem. É assim em praticamente todos os seus filmes. Van Sant trata seus personagens em primeiro plano – e é essa a perspectiva que joga sobre o espectador.

Isso lhe é particularmente útil nesse filme pouco acima do convencional onde o gimmick consiste em, nos momentos decisivos, inverter a maneira pela qual os personagens se apresentam. Na mão de outro diretor, talvez Terra Prometida se limitasse a um filme banal. Gus Van Sant lhe assegura uma dimensão acima. Caminhamos juntos com os personagens, os enxergamos melhor, chegamos talvez a sentir os seus odores – e com isso sentimos mais e melhor as suas mudanças. O que acontece com as terras submetidas a extração de gás natural pode não nos mobilizar tanto. Mas o que todas aquelas pessoas fazem ou deixam de fazer para essa disputa ganham uma súbita e inesperada importância.



LOVELACE 

Direção – Rob Epstein

Panorama



Rob Epstein é certamente um dos mais importantes documentaristas do século 20. Um dos mais arrojados, mais inovadores, mais corajosos. Epstein é um grande ativista de causas sociais, especialmente da minoria gay. Filmes como Os Tempos de Harvey Milk (1984), O armário de celuloide (1995), Parágrafo 175 (2000) estão entre o que de mais sério e importante o cinema contemporâneo produziu neste sentido.

É justificada, portanto, a expectativa em cima de sua biografia de Linda Lovelace. O impacto causado por Deep Throat, em 1972, é difícil de ser percebido pelas gerações mais jovens. Deep Throat – expressão ate hoje utilizada para a realização do sexo oral, digamos, em profundidade – afetou diretamente todos os jovens da época. A belíssima estrela – que na tela grande realizava o sonho de milhões – ganhou notoriedade instantânea. Foi depois a protagonista de um rumoroso caso de abusos com seu produtor e marido. Escreveu um livro sobre isso, no qual o filme de Epstein se baseia.

É um livro controverso. Para muitos, um simples espetáculo de arrependimento planejado. Há um longo caminho a ser percorrido entre a exposição espontânea e a vitimização, mas a verdade é que Lovelace penou, entre drogas e maus tratos, até sua morte.

Sua vida é no mínimo muito mais interessante do que o reducionismo apresentado no filme que a retrata. Outros cineastas poderia ter desenhado um drama lacrimejoso sobre a estrela que ingressa por 17 dias na indústria pornô e depois é simplesmente martirizada pelos seus produtores. Epstein, não. Por mais insólito que possa parecer, ele transforma a complexa vida de Linda Lovelace numa fabula moralista hollywoodiana, mesmo sabendo, como poucas pessoas, que a historia não é bem assim. Há momentos divertidos no filme, outros absurdos (uma citação a French Connection antes do lançamento do filme de Friedkin), mas jamais, em momento algum, o sabor da cena pornô da época, a revelação de uma vida ousada, multifacetada e paradigmática como a da mulher que massificou essa indústria de fundo de garagem. Lovelace merecia um diretor mais corajoso, ousado e conhecedor das coisas, um diretor como... Rob Epstein.



O OLHAR DO AMOR (The Look of Love)

Direção – Michael Winterbottom

Fora de Competição



Se um diretor que sabe das coisas, como Rob Epstein, escorrega ao traçar a biografia de Linda Lovelace, um cineasta que sabe bem menos, como Michael Winterbottom, pode fazer o mesmo ao falar sobre um dos reis da indústria pornô da Grã-Bretanha, Paul Raymond. O Olhar do Amor lança sobre o mogul da indústria do sexo na Inglaterra um olhar cujo moralismo envergonharia a Scotland Yard.

Raymond, que desenvolveu grande parte dos bares e publicações do baixo Soho, em Londres, era, como Lovelace, uma personalidade múltipla – mas, ao contrario da atriz norte-americana, um bom empresário. Foi um Hugh Heffner do seu tempo, um homem marcado por vitórias e tragédias, como a morte prematura de sua filha por overdose de heroína. Viveu a vida intensamente – e cercou-se de elementos consistentes para desenvolver o seu império.

Winterbottom não consegue vê-lo como nada mais que um maníaco sexual. Steve Coogan o interpreta desastradamente, monoliticamente, de uma forma constrangedoramente convencional. O sexo, a droga, tudo é coisa do demônio e Winterbotton, como habitualmente, se comporta como um cineasta que busca enganar os tolos com um approach que absolutamente não sabe lançar.

Do inferno, Raymond deve estar se divertindo com sua incapacidade de enxergar o mundo ao seu redor.

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