Os créditos finais acabavam de rolar na tela e duas distintas senhoras quase rolavam escada do Espaço Unibanco abaixo, de tanto rir. Comentavam cenas de O Homem do Ano, que acabavam de assistir. “Só faltou ele matar o José Wilker!”, disse uma. “Faltou matar também o Agildo Ribeiro”, corrigiu a outra. E riam. Riam muito, como meninas recém-saídas de uma sessão de fofocas. Eu descia as escadas um pouco à frente. Esperaria delas qualquer reação, menos essa. Mas logo concluí que elas tinham razão. O Homem do Ano é uma comédia. Negra, deliciosa.
E assombrosa. Uma comédia dessas que nos pegam pelo pé. Que mostram o horror na sua forma mais crua. Que nos fazem rir e, ao mesmo tempo, nos questionar sobre o quê estamos rindo. Rimos muito da boçalidade de Máiquel e seus comparsas, mas, como por um perverso efeito colateral, pensamos no misto de idiotia, oportunismo e impunidade que alimenta a violência de nossas cidades. Matar anda fácil demais. O filme de José Henrique Fonseca é sobre isso.
Alvo fácil para julgamentos morais, como foi Cidade de Deus, essa adaptação do romance policial O Matador, de Patrícia Melo, não é veículo de salvação para suas personagens, nem endeusamento de uma violência redentora à Hollywood. Antes disso, é a história de um imbecil que troca a alma por um bocado de paparicações. Máiquel não sabe distinguir entre Bem e Mal, oferta e armadilha, porco e cachorro. Incapaz de um momento de reflexão, ele é brinquedo de uma sociedade que, em nome dos “bons princípios”, estimula a ação de animais predatórios.
Todo um caldo de racismo, conservadorismo hidrófobo, fundamentalismo evangélico, ambições miúdas e vaidade psicopata está representado na trama. Mas nada tem o didatismo ou o be-a-bá de denúncia que sempre se espera acompanhar esse tipo de material no cinema brasileiro. Tudo bate mais forte através do roteiro bem amarrado, com uma personagem central muito bem desenvolvida, atuações meticulosamente buriladas (sobretudo de Murilo Benício e Jorge Dória, sem falar no Pereio-sempre-Pereio) e um senso de atmosfera que deixa o espectador grudado na tela do início ao fim.
A crítica moralista a O Homem do Ano passa também pelos ataques à linguagem publicitária e ao tal estilo “fashion”, que agora parecem atingir todo e qualquer filme que empregue uma visualidade cuidada e moderna. Eu, particularmente, tenho uma queda por filmes de ficção chegados ao documental, que sabem mergulhar seus atores numa impressão de veracidade, tiram partido de locações reais etc. Mas também posso reconhecer e apreciar quando a proposta é outra. José Henrique Fonseca pinta uma Baixada Fluminense quase de estúdio – sintética, concentrada, às vezes mesmo artificial. E o faz com um domínio de significados e sentidos que seu fraco episódio no longa Traição não autorizava prever.
Esse Pulp Fiction da Baixada carrega, certamente, o ônus da influência. Há cenas diretamente decalcadas de Quentin Tarantino (como os tiros à queima-roupa dentro do carro) e uma sombra scorseseana (Taxi Driver) no amoralismo social que premia a personagem principal. Se não é um produto original, é um filme que combina bem seus ingredientes e usa a ficção para tocar em feridas expostas, mas não plenamente compreendidas. Tem tudo para ajudar o cinema brasileiro a sustentar sua boa fase com o público. Pelo menos com as senhorinhas do Unibanco, foi assim.
O HOMEM DO ANO
Brasil, 2003
Direção: JOSÉ HENRIQUE FONSECA
Produção: CONSPIRAÇÃO FILMES
Roteiro: RUBEM FONSECA
Fotografia: BRENO SILVEIRA
Trilha Sonora: DADO VILLA LOBOS
Direção De Arte: TONI VANZOLINI
Montagem: SÉRGIO MEKLER
Elenco: MURILO BENÍCIO, CLAUDIA ABREU, NATÁLIA LAGE, JORGE DÓRIA, PAULO CÉZAR PEREIO, CARLO MOSSY, AGILDO RIBEIRO, MARILU BUENO E VIC MILITELLO
Duração: 111 minutos