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GRAMADO 2003: O DIA EM QUE O JÚRI PIROU

28.08.2003
Por Marcelo Janot
GRAMADO 2003: O DIA EM QUE O JÚRI PIROU

Raros são os festivais em que o veredito do júri é recebido com aplausos. Há quase sempre um ou outro prêmio a ser contestado, e isso pode ser explicado pelas diferentes linhas de pensamento e variadas origens de seus integrantes. Mas, a julgar pelo resultado da categoria principal do Festival de Gramado, a de longas-metragens de ficção brasileiros, este ano o júri foi longe demais. O resultado foi uma verdadeira aberração, causando constrangimento em quem assistiu aos filmes em competição.



Quem eram os jurados: o cineasta gaúcho Tabajara Ruas (Netto Perde Sua Alma); a cineasta paulista Anna Muylaert (Durval Discos); o ator cubano Jorge Perugorría (Morango e Chocolate); o ator paulista John Herbert; o cenógrafo carioca Marcos Flaksman; o cineasta chileno Orlando Lübbert (Um Táxi Para Três) e a crítica gaúcha Ivonete Pinto.



De cara, os nomes selecionados já causam um certo desconforto por dois motivos:



1.Tabajara Ruas é co-roteirista, de Anahy De Las Misiones, cujo diretor Sergio Silva concorria este ano com Noite de São João.

2. Marcos Flaksman é parente de Paulo Flaksman, diretor de arte de Dom.



Fora esta questão ética, um outro ponto se coloca: já que os filmes brasileiros são exibidos sem legendas em espanhol, como esperar que os jurados estrangeiros (Lübbert e Perugorría) compreendam os diálogos em português?



O resultado foi uma lambança generalizada, especialmente em três dos quatro prêmios destinados a Noite de São João. Dizer que Noite de São João era o pior filme do festival pode ser contra-argumentado de que se trata de uma visão pessoal do crítico, por isso subjetiva. Mas qualquer pessoa que tenha ido pelo menos uma vez ao cinema irá concordar que a fotografia do filme é completamente equivocada, com erros primários como a iluminação estourada no rosto dos atores em várias cenas. E que a música é quase inexistente e sem função no filme. E que o ator Marcelo Serrado tem muitas dificuldades para mostrar naturalidade e incorporar o sotaque gaúcho de seu personagem.



Estes prêmios para Noite de São João se tornam ainda mais questionáveis quando lembramos que havia três fortíssimos concorrentes nessas categorias: a fotografia de O Preço da Paz, a música de Apolônio Brasil e O Preço da Paz e a grande atuação de Marco Nanini em Apolônio Brasil. Mesmo que suponhamos que Tabajara Ruas possa não ter tido influência no resultado, sempre ficará no ar a dúvida ética por sua ligação com o diretor de Noite de São João, Sérgio Silva.



Outra coisa que chamou a atenção na premiação de ficção brasileira: o prêmio especial do júri, que normalmente costuma ser encarado como um “segundo lugar”, aqui ganhou ares de prêmio de consolação. Ao concedê-lo a Apolônio Brasil, de Hugo Carvana, o júri pareceu estar meramente reconhecendo os serviços de Carvana ao cinema nacional. Talvez até por isso ele tenha sido o primeiro prêmio da categoria a ser entregue, e não o penúltimo, como seria correto. Uma injustiça histórica, porque, independentemente de tudo que Carvana representa para o cinema nacional, seu filme era disparado o melhor da competição.



Mas ao que aparece, apenas os cariocas conseguiram gostar de Apolônio, já que fenômeno semelhante aconteceu no júri da crítica. Foram poucos os críticos de outros estados que gostaram de Apolônio Brasil. A maioria considerou um equívoco a parte contemporânea do filme, envolvendo a disputa pelo cérebro do pianista, como se isso fosse capaz de tirar o brilho de um filme que não só homenageia as chanchadas de forma correta como é uma tocante ode à boemia carioca das décadas de 50 e 60, com cenas antológicas e uma grande atuação de Marco Nanini. Alguns integrantes do júri da crítica chegaram a sugerir que nenhum filme da categoria fosse premiado, como protesto pela má qualidade da seleção, mas De Passagem, do diretor estreante Ricardo Elias, acabou saindo vencedor.



De Passagem também foi eleito o melhor filme nacional de ficção pelo júri oficial, que lhe atribuiu ainda as surpreendentes estatuetas de direção, roteiro e ator coadjuvante (Fábio Nepô). A super produção O Preço da Paz, calcada no esmero técnico dos filmes hollywoodianos, levou merecidamente os prêmios de montagem e direção de arte, além do prêmio do júri popular. Dom deu à belíssima Maria Fernanda Cândido o Kikito de melhor atriz.



A premiação da competição latina, que teve filmes de melhor nível, foi menos controversa. O espanhol Segunda-feira ao Sol, de Fernando Leon de Aranoa, abiscoitou os Kikitos de melhor filme, diretor e ator (Javier Bardem), além do prêmio da crítica. O surpreendente uruguaio Corazón de Fuego ganhou o prêmio especial do júri e o do júri popular, enquanto o argentino Lugares Comunes faturou com justiça o prêmio de melhor atriz (Mercedes Sampietro).



O júri de documentários, formado por Leon Cakoff (crítico e exibidor), Antonio Carlos Textor (documentarista), Lucélia Santos (atriz), David Quintans (cineasta) e Zuenir Ventura (jornalista), também surpreendeu ao deixar o favorito, o badalado e supervalorizado O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, de mãos abanando. Optou-se por dar o prêmio especial ao formal O Risco, Lúcio Costa e a Utopia Moderna, de Geraldo Motta Filho, e o Kikito de melhor filme para À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel. Nesta versão longa de um premiadíssimo curta de mesmo nome - À Margem da Imagem -, o enfoque na discussão sobre a imagem diluiu-se e deixou de ser o leitmotiv do filme. Por outro lado, os depoimentos dos moradores de rua ficaram menos recortados, ganhando mais força e dando mais dramaticidade ao filme. No final das contas, À Margem e O Prisioneiro se equivalem. O filme de Sacramento acabou levando prêmio da crítica porque inova mais no retrato dos excluídos ao colocar a câmera na mão dos presos.



O júri de curtas, formado por Patsy Cecato (atriz), Luiz Carlos Lacerda (cineasta), Luelane Loiola Corrêa (cineasta), Antônio Pitanga (ator) e Jacques Cheuiche (diretor de fotografia), também cometeu pequenos deslizes na categoria 35mm, embora os acertos tenham sido em maior número, como os prêmios de melhor filme e fotografia para Carolina, de Jéferson De, o de roteiro e ator (Valdo Nóbrega) para O Resto é Silêncio, de Paulo Halm, o de montagem para Amor Só de Mãe, de Dennison Ramalho, o de atriz (Dedina Bernadelli) para Jonas, de Allan Sieber. No Bar, de Cleiton Stringuini e Paulo de Tarso Mendonça, ganhou os prêmios de direção e do júri popular.







RELAÇÃO COMPLETA DOS VENCEDORES DOS KIKITOS



Longas-metragens brasileiros (35 mm)



Filme -- De Passagem



Diretor -- Ricardo Elias, De Passagem



Ator Coadjuvante -- Fábio Nepô, De Passagem



Atriz Coadjuvante -- Dira Paes, Noite de São João



Ator -- Marcelo Serrado, Noite de São João



Atriz -- Maria Fernanda Cândido, Dom



Roteiro -- Cláudio Yosida e Ricardo Elias, De Passagem



Montagem -- Paulo Morelli, O Preço da Paz



Fotografia -- Rodolfo Sanchez, Noite de São João



Música -- Ayres Potthoff, Noite de São João



Direção de Arte -- Daniel Marques, O Preço da Paz



Prêmio Especial do Júri -- Apolônio Brasil, Campeão da Alegria



Prêmio da Crítica -- De Passagem



Prêmio do Júri Popular -- O Preço da Paz





Longas-metragens latinos (35 mm)



Filme -- Segunda-feira ao Sol (Espanha)



Ator -- Javier Bardem, Segunda-feira ao Sol



Atriz -- Mercedes SamPietro, Lugares Comunes (Argentina)



Prêmio da Crítica -- Segunda-feira ao Sol



Prêmio do Júri Popular -- Corazon de Fuego (Uruguai)



Diretor -- Fernando Leon de Aranoa, Segunda-feira ao Sol



Prêmio Especial do Júri -- Corazon de Fuego





Documentário (35 mm)



Filme -- A Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel



Prêmio Especial do Júri -- O Risco, Lucio Costa, e a Utopia Moderna, de Geraldo Motta Filho



Prêmio da Crítica -- O Prisioneiro da Grade de Ferro





Curtas-metragens (35 mm)



Filme -- Carolina, de Jéferson De



Diretor -- Cleiton Stringuini e Paulo de Tarso Mendonça, No Bar



Ator -- Valdo Nóbrega, O Resto é Silêncio



Atriz -- Dedina Bernardelli, Jonas



Roteiro -- Paulo Halm, O Resto é Silêncio



Montagem -- Estevan Santos, Amor só de Mãe



Fotografia -- Carlos Ebert, Carolina



Música -- Four Nazo & Flu, Amor só de Mãe



Direção de Arte -- Guga Feijó e Luciane Nicolino, Jonas



Prêmio Especial do Júri -- Terminal, de Léo Cadaval pela concepção gráfica



Prêmio da Crítica -- Carolina



Prêmio do Júri Popular -- No Bar





Curtas e médias-metragens (16 mm)



Filme de Curta-Metragem -- Cinema Pagador, de Isabel Ribeiro e Henrique Pires



Filme de Média-Metragem -- Paisagem de Meninos, de Fernando Severo



Diretor -- André Luiz de Luiz, Não Perca a Cabeça



Ator -- Diego Kozievitch, Paisagem de Meninos



Atriz -- Bárbara Paz, Produto Descartável



Roteiro -- Edson Bueno e Fernando Severo, Paisagem de Meninos



Prêmio Especial do Júri -- João, de Flávio Vieira, pela experimentação de linguagem



Prêmio Especial de Direção de Arte -- Para Catherine Agniez, no filme Paisagem de Meninos



O FESTIVAL DE GRAMADO 2003 DIA-A-DIA



O PRIMEIRO DIA



O Festival de Gramado de 2003 começou morno na gelada serra gaúcha. Entre os curtas exibidos ontem, Castanho, de Eduardo Valente, foi o destaque. No segundo trabalho do diretor de O Sol Alaranjado, a extraordinária música do Los Hermanos substitui os diálogos e cria a atmosfera para uma história sobre recuperação de auto-estima contada de maneira criativa e inusitada. Terminal, de Leo Cadaval, é uma animação em preto-e-branco de traço original, de alta qualidade. Já o curta Águas de Romanza, de Gláucia Soares e Patrícia Baía, investe sem sucesso na fórmula "criança-poesia".



Entre os longas, o que mais agradou foi o espanhol Segunda-feira ao Sol (Los Lunes al Sol), de Fernando León de Aranoa. Estrelado por um Javier Bardem quase irreconhecível (barrigudo e calvo), o filme retrata, meio a la Ken Loach, o cotidiano de um grupo de amigos desempregados e desesperançosos numa cidade portuária espanhola. Mesmo com uma fotografia naturalista em tons escuros e tema sombrio, Aranoa consegue escapar da melancolia com toques de humor e ótimos diálogos. Bardem rouba a cena na maior parte do filme. Já o brasileiro De Passagem, do estreante em longas Ricardo Elias, também trata da amizade entre personagens à margem do sistema, mas decepcionou sobretudo pelo roteiro óbvio e esquemático.



O SEGUNDO DIA



O segundo dia do Festival de Gramado chamou mais atenção pela polêmica fora das telas do que pelos filmes. No longa argentino Lugares Comunes, o diretor Adolfo Aristarain narra a história de um professor de Letras a partir do momento em que ele recebe a notícia da aposentadoria compulsória. Tendo como pano de fundo uma Argentina mergulhada no caos econômico, o filme mergulha nos dilemas e incertezas do personagem em relação ao futuro. A estrutura clássica e comportada demais é compensada pelo ótimo elenco (com destaque para o veterano Frederico Luppi) e por alguns ótimos diálogos, que incluem uma antológica e emoicionante declaração de amor do professor para sua mulher na cena em que ele leva uma cantada de uma bibliotecária.



Entre os brasileiros, o aguardadíssimo documentárioO Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, mostrou o cotidiano dos presos da extinta Casa de Detenção de SP, o Carandiru, sob a ótica dos próprios detentos, que receberam aulas de câmera para registrar as imagens. Nota-se claramente no discurso do realizador a intenção de que seu filme seja encarado como um “anti-Carandiru” de Babenco. Coincidentemente, Prisioneiro começa justamente de forma oposta à que Carandiru termina, com a implosão do presídio sendo registrada de trás pra frente. O filme tem momentos contundentes e impressiona, embora perca parte de sua força ao se estender demais.



O momento polêmico da noite ficou por conta do discurso do curta-metragista Dennison Ramalho, que fez um teatro com palavrões e todo tipo de xingamento para anunciar seu curta Amor só de mãe, um filme de terror inspirado por entidades do candomblé. A trama macabra frouxa talvez combinasse melhor com uma estética assumidamente trash , mas o filme é tão bem dirigido que não seria surpresa se Dennison fosse convidado pelo produtor Diler Trindade para dirigir o próximo filme da Xuxa. A última produção de Diler, o filme Dom, dirigido por Moacyr Góes, encerrou a noite de ontem adaptando o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, para os dias de hoje, temperando a trama de ciúmes até com exames de DNA. Estrelado por Marcos Palmeira e Maria Fernanda Cândido, que protagonizam nada menos que quatro cenas de sexo (um tanto pudicas), o filme visa claramente o público habituado à linguagem televisiva das novelas. Pode vir a ser um campeão de bilheteria.



TERCEIRO E QUARTO DIAS



O terceiro dia de competição foi quase uma tortura para os cinéfilos. O longa português A Selva, de Leonel Vieira, e o brasileiro Noite de São João, de Sergio Silva, proporcionaram momentos do mais puro enfadonho e cansaço, reforçando a necessidade de o Festival repensar seus horários de exibição dos filmes (a noite começou às 19h30 e terminou depois de 1h da madrugada). Com atores brasileiros no elenco (Cláudio Marzo, Chico Diaz, José Dumont, Maitê Proença, entre outros), A Selva é ambientado na Amazônia do início do século passado, e retrata a tirania de um coronel na exploração da borracha. Apesar da produção caprichada, a fita irrita pela tom excessivamente épico imposto por Vieira. Já Noite de São João, uma adaptação da peça Senhorita Julia, de Strindberg, para o interior do Rio Grande do Sul no século passado, é um equívoco completo. O elenco, encabeçado pela atriz Fernanda Rodrigues, tem atuações constrangedoras, certos diálogos chegam a ser embaraçosos e até mesmo tecnicamente o filme deixa muito a desejar, com a luz sempre estourada no rosto dos atores.



O que salvou a noite foram os dois melhores curtas exibidos até então no Festival: Carolina, de Jeferson De, e Visionários, de Fernando Severo. O primeiro reconstitui a trajetória de Carolina de Jesus,uma ex-favelada negra que virou um sucesso editorial com um livro em que relatava seu cotidiano de miséria e preconceito. O diretor Jefferson De, criador do manifesto Dogma Feijoada, que propõe um cinema negro brasileiro, coloca Zezé Motta na pele da personagem, recitando os textos e intercalando com imagens de arquivo. O resultado é tão contundente quanto Visionários, que não tem diálogo algum, apenas música clásica reforçando a força das imagens apocalípticas dos vestígios de dois santuários construídos por agricultores no norte do Paraná e abandonados ao tempo.



No quarto dia, o Festival de Gramado finalmente conheceu seu primeiro grande favorito: Apolônio Brasil, Campeão da Alegria, de Hugo Carvana, mereceu aplausos entusiasmados e emocionados durante e ao final da sessão. Em clima de chanchada, com diversos e deliciosos números musicais, o filme relembra a vida de um pianista célebre na noite carioca dos anos 50 e 60. Com uma brilhante atuação de Marco Nanini e participações afetivas de gente como Antônio Pedro, Maria Gladys, Silvia Bandeira e Louise Cardoso, além de José Lewgoy em sua última e marcante aparição nas telas, o filme de Carvana é uma ode à boemia carioca, e tem momentos verdadeiramente antológicos, como a cena em que um general que tenta interromper uma festinha de embalo acaba tomando um ácido sem querer, e pira ao som de Roda Viva. A julgar pelos longas brasileiros exibidos antes, Carvana será o campeão de Kikitos do evento.



QUINTO DIA



A exibição dos filmes em competição terminou na sexta-feira com uma boa surpresa: o filme uruguaio Corazón de Fuego, de Diego Arsuaga, encantou a platéia com a história de três velhinhos que seqüestram uma histórica locomotiva para impedir que ela seja vendida para os americanos e seja utiizada num filme hollywoodiano. Chamando mais atenção pela carga de simbolismos que o filme carrega do que pela trama policial em si, este simpático road-movie reúne três grandes atores (Hector Alterío, Federico Luppi e Pepe Soriano) em atuações inspiradas e uma firmeza narrativa que o coloca entre os favoritos aos prêmios Kikito.



O último filme brasileiro exibido no festival, O Preço da Paz, do estreante Paulo Morelli, impressiona pela grandiosidade da produção, que reúne mais de 1500 figurantes para contar um episódio sangrento da Revolução Federalista, no final do século 19. Logo de cara, uma cena de batalha não deixa nada dever, em termos de perfeição técnica e quantidade de tiros e explosões, a épicos hollywoodianos como O Patriota. O problema é que o filme acaba resultando frio e sem emoção como um O Patriota da vida.

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