Apesar do desempenho marcante da atriz Barbara Sukowa, o filme Hannah Arendt, dirigido por Margarethe Von Trotta, sofre com um roteiro problemático assinado pela cineasta e por Pam Katz. A partir do que vemos/ouvimos Martin Heidegger (com quem Arendt manteve relações profissionais e amorosas) dizer sobre o pensar ser uma atividade solitária, o filme cai no velho clichê de apresentar a personagem central como mais um “herói solitário” do cinema, e de feitio idealizado porque mantém suas convicções contra opiniões generalizadas avessas ao seu trabalho. No caso, os artigos que escreveu para a revista The New Yorker - e que eram, na verdade, um ensaio filosófico-político - sobre o julgamento do nazista Eichmann por um tribunal israelense no início dos anos 1960. Foi presenciando esse fato real (visto no filme em cenas documentais) que Arendt formulou a – hoje respeitada – tese sobre a banalidade do mal, negando ao nazista o status de “monstro”, afirmando que ele era uma pessoa “normal, um “ninguém”.
As reações foram tremendas: ela sofreu rejeição de amigos - e até mesmo Israel enviou emissários algo ameaçadores pretendendo que ela não publicasse o ensaio em livro – que foi intitulado Eichmann em Jersualém. O filme - que começa e termina com Hannah sozinha, fumando – e pensando, é claro – mostra com bastante ênfase o mal-entendido segundo o qual ela estaria como que absolvendo Eichmann ao compreendê-lo de um modo inédito e original, por mais que ela dissesse que compreender não é perdoar. Mas também a vemos muito questionada por, supostamente, “acusar” as vítimas por haver tocado no papel de lideranças judaicas as quais teriam, de certa forma, propiciado a extensão do Holocausto por tentativas de negociação com os nazistas. Este segundo ataque ainda é mais enfatizado pelo filme sem que o espectador seja informado mais claramente (a não ser por uma breve cena – real – do julgamento) a que Hannah se referiu mais exatamente para causar tanta revolta entre os judeus.
De certa forma, o filme propicia que o espectador saia do cinema mais a par do que foram as críticas que ela recebeu do que mais esclarecido sobre sua “defesa” - que ela teria acabado por aceitar fazer publicamente, o que é visto em uma cena (com intenção de ser um “clímax”) próxima do final, mas ainda assim, seguida por outra forte desaprovação de um amigo da filósofa. Não se trata de cobrar do filme que seja um documentário sobre o pensamento de Arendt, mas como ficcionalização de episódios de fato acontecidos, encontramos opções questionáveis.
Há bastante apoio afetuoso de uns poucos: de seu marido, Heinrich Blücher (mesmo discordante de vários pontos quanto ao que Hannah pensava) e de uma amiga fiel, chamada apenas de ‘Mary’ durante todo o filme, ficando de fora que esta é a escritora Mary McCarthy, cujo romance mais famoso, O Grupo, foi levado às telas em 1966 por Sidney Lumet; mas só vamos saber quem ela é se ficarmos para os créditos finais do elenco. Já o autor de um texto que se pretendia arrasador contra os artigos de Arendt é nomeado apenas de ‘Norman’ (seria Norman Mailer?) até na lista do cast.
Algumas ideias atribuídas à pensadora podem impressionar, tal como na cena em que ela faz sua única autocrítica ao corrigir que “o mal não é profundo e radical: o que é profundo e radical é o bem; o mal é apenas extremo”. Mas pode ser de difícil assimilação o que ela afirma quanto a um “equívoco” da tradição ocidental pensar o egoísmo como raiz do mal. O filme poderá ter o mérito de provocar curiosidade para conhecermos os escritos de Hannah Arendt - e até, seguindo a independência de pensamento que ela exemplifica, contestá-la. [Aliás, no debate que se seguiu à exibição do filme no Estação Rio em 25/06, houve um certo impasse quando foi questionada a segunda afirmação acima sobre o egoísmo: como o autocentramento narcisista que desconsidera a alteridade e que impede a identificação e empatia para com o outro - que deixa de ser visto como um semelhante - não seria mais fundamental do que Arendt afirma sobre a incapacidade de um Eichmann pensar?]
Com tantas críticas de seus adversários intelectuais sobre suas atitudes, taxada de “arrogante”, “europeia” (leia-se ‘germânica’), de “olhar os judeus de cima para baixo”, etc, o filme pode até fazer com que se considere muito os ataques; o que diverge do tom geral que parece pretender mostrar a personagem como uma heroína injustiçada por pessoas que não estavam à altura de seu brilho intelectual. Ou seja, Margarethe Von Trotta repete uma (involuntária?) ambiguidade que já havíamos detectado em outro filme seu, As Mulheres da Rosenstrasse, de 2003.
A ênfase da escritora (tal como mostrada no filme) sobre a incapacidade de Eichmann pensar (pensamento como capacidade de fazer juízo entre o certo e o errado) também nos soou secundária quando vemos as atitudes do Eichmann real nas cenas documentais: friamente, com absoluta indiferença, ele diz não ter nada a ver com as mortes que, por exemplo, ocorriam já nos vagões que transportavam os judeus para os campos, pois ele “apenas” os colocava nos trem, era esta sua atividade (o famoso “apenas cumprir ordens”) acrescentando: “Eu nunca matei nenhum judeu”. O que se vê é um psicopata frio e indiferente às pessoas: só lhe interessavam os arquivos, a burocracia, os números. As pessoas não passam de detalhes que se tornaram incômodos e ele se mostra amplamente indiferente aos outros, sem nenhuma identificação com os que morreriam – e muito menos consegue desenvolver empatia para com esses "estrangeiros": os “diferentes” porque judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, eslavos, etc. Sua identificação era apenas com o ideário autocentrado de uma 'raça pura ariana', e ele se vê como parte desse todo autocentrado e imune à piedade pelos "diferentes", os que eram vistos como "de fora" em relação a essa "raça superior".
Arendt teve toda a razão em perceber que psicopatas não são "monstros", mas humanos (como todos nós), só que eles se consideram acima de nós: arrogância ou desmesura - a pior falha humana para os gregos antigos. Mas a dramaturgia dos flashbacks que mostram (de leve, como que para não deixar de mencionar) a relação dela com Heidegger podem até dar força à crítica que ela recebe no final: se ela fosse de fato “uma filósofa de formação europeia, alemã, que nunca conseguiu perder essa identidade e que olha os judeus de cima”, tal descrição pode ser entendida como se ela estivesse aprisionada a uma identificação com Heidegger (que se filiara ao Partido Nazista já em 1933).