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SABER DO QUE SE ESTÁ FALANDO

29.08.2003
Por Nelson Hoineff
SABER DO QUE SE ESTÁ FALANDO

O mundo bem que poderia ser dividido entre as pessoas que sabem o que estão falando e as que não sabem. Pessoas que podem estar falando de qualquer coisa: da reforma tributária, de energia nuclear, de praia, economia ou futebol. Quando falam com conhecimento, seus discursos ganham consistência; quando falam por falar, tornam-se patéticas.



E mais patéticas ainda se tornariam não fosse pelo desditoso fato de que suas platéias, com notável freqüência, também não têm a mínima idéia do que elas estão falando. É nesse momento que a leviandade alça vôo; é ali que as empulhações florescem; é então que os políticos desonestos ganham autoridade.



É nesse espaço também que prospera um tipo de expressão artística que não quer dizer nada, que fala do nada para a massa embrutecida pela banalidade que extirpou todas as suas emoções, ou pelo menos as mais nobres. É ali que se constroem as obras que começam e acabam no mesmo lugar. Quando o artista se exprime sabendo do que está falando, no entanto, forja-se o caminho para o estabelecimento de um laço elevado entre ele e o seu público, cria-se nesse convívio um diálogo produtivo. A obra evolui para alguma coisa além do entorpecimento mental.



Hugo Carvana pertence a esse grupo. É um carioca típico, que incorpora a riqueza da cultura de seu lugar. Olha em sua volta e entende o que está vendo. Processa tudo isso com a sua própria visão da sociedade e da arte. O resultado se expressa em filmes como Vai Trabalhar Vagabundo, como Apolônio Brasil, Campeão da Alegria.



Em filmes imperfeitos assim, onde o cardápio do fast food cinematográfico não é respeitado, onde o sabor não é homogêneo mas também não é insosso. Apolônio Brasil fala sobre um cérebro de um músico que é guardado durante anos. Por quê fala desse cérebro é um mistério. Aparentemente, para que todas as reminiscências do artista fossem surgindo. Ou para que o filme pudesse trafegar pelo tom de chanchada que o diretor lhe impõe. A vida de Apolônio Brasil poderia ter sido descrita linearmente? Certamente, e sem dúvida nenhuma com um ganho qualitativo para a obra.. Mas não foi isso que quis o diretor. No seu entendimento, é na chanchada que seu musical poderia emergir com maior naturalidade.



Se essa é uma questão polêmica, ela importa muito pouco para a essência do filme. Carvana resgata um momento essencial da cultura da classe média brasileira, sem o ranço da nostalgia mas, ao contrário, com profunda contemporaneidade. Apolônio é um cantor que não vive no gênero em que o filme se inscreve, mas no ator que o abriga. O ator, Marco Nanini, é um artista singular. O cinema brasileiro teve e tem poucos intérpretes tão completos (vê-lo ao lado de Selton Melo em Lisbela e o Prisioneiro é um privilégio que não se repete muitas vezes). Rigorosamente nenhum outro ator veria este Apolônio com a clareza que Carvana necessitava. O resultado não se restringe a um belo show de técnicas de interpretação. Há ali algo que se encontra raramente, que está presente em poucos artistas, como Bethânia acima de todos, em artistas especiais que sabem do que estão falando.



Um musical que vai buscar algumas das mais belas canções brasileiras dos anos 50 aos 80. Seria possível, talvez, juntar meia dúzia de seleções do mesmo nível. Poucos diretores musicais no entanto lhes dariam o tratamento conseguido por David Tygel. Tygel vai no fígado de cada uma, participa da composição de outras, como o delicioso Viva o Uísque. Não se limita ao óbvio mas não foge do contexto. Não transforma o samba-canção em techno. Como Carvana e Nanini, ele sabe do que está falando.

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