Assim como em todos os anos, ao final da temporada de cinema do verão dos EUA (inverno do Brasil), a época dos chamados filmes arrasa-quarteirões (blockbusters), será anunciado a quebra do recorde de arrecadação do ano anterior. Assim como todo os anos, esta será uma meia-verdade, já que a cada ano as grandes bilheterias ficam concentradas num número cada vez menor de filmes (que faturam quantias astronômicas), e aumenta o número de filmes que fracassaram, arrecadando pouco e ainda por cima tendo gasto demais. Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra, tudo indica, ficará no cômputo geral com o segundo lugar nas bilheterias atrás do desenho animado Procurando Nemo (primoroso, cheio de nuances, digno de um lugar entre os dez melhores filmes do ano).
É uma feliz coincidência que estes dois belos filmes sejam os dois maiores sucessos da temporada de verão dos EUA, tanto com o público como entre a crítica (do mundo inteiro). Em meio a filmes de verão decepcionantes (Matrix Reloaded, Exterminador do Futuro III), frouxos (Lara Croft II), quando não atrozes (Panteras II), sem falar nas possíveis porcarias ainda não estreadas (como o execrado, fracassado e longuíssimo Bad Boys II), Piratas, bom por si só, se sobressai ainda mais. Só que nada faria crer que ele pudesse ser diversão de alto nível. O subgênero filmes-de-pirata estava moribundo em meio à homenagens sem pujança (Piratas, de Roman Polanski), e revisões cretinas (A Ilha da Garganta Cortada, que ajudou a falir o estúdio que o produziu). A idéia-base do filme foi tirada de uma atração temática de um parque da Disney – quase sempre este tipo de conceito dá errado. E para completar, o produtor Jerry Bruckheimer(Piratas do Caribe é sem dúvida um filme de produtor), um dos criadores do moderno conceito de fitas arrasa-quarteirões, tem carreira no mínimo questionável nos anos 90, com dois pontos baixos marcantes: Armageddon e Pearl Harbor.
Felizmente as previsões estavam erradas. O plot do filme (basicamente envolvendo um grupo de piratas para lá de especiais, o ex-capitão do navio, e um jovem casal) dá margem a um roteiro correto, que ao mesmo tempo que segue os cânones do subgênero tem seus toquezinhos de criatividade (como a ironia anti-hedonista da maldição que afeta os piratas; o comportamento mais independente da mocinha, as questões sobre honra e papel social tratadas de melhor forma do que o usual). Isto poderia não render nada se a composição imagética dos últimos filmes de Bruckheimer (sempre confusa e irritante) fosse seguida com fidelidade. Piratas, embora siga o mesmo estilo de cores, iluminação, enquadramentos, ritmo e emprego de efeitos especiais das obras produzidas por Bruckheimer, não se parece com esses filmes. Tem uma narração límpida, eficiente, muitas vezes empolgante, em que se entende o que está acontecendo numa luta e com quem (e o momento da revelação dos piratas no navio é sensacional), que entretém e na qual as eventuais pirotecnias têm lógica, ao contrário de alguns outros filmes em que elas servem como subterfúgios para tapear os espectadores, esconder deficiências gerais. Talvez o que Bruckheimer precisasse mesmo era um diretor como o de Piratas, Gore Verbinski, um cineasta que vai de Ratinho Encrenqueiro a O Chamado sem muito brilho mas também sem arroubos fúteis e mediocridades variadas de alguns diretores que trabalharam com o produtor, tais como Michael Bay, Dominic Sena, David McNally e Joel Schumacher.
Se há algum defeito maior neste filme, ele é realmente estético - por vezes Piratas tem iluminação escura demais. Isto é fruto de uma insegurança generalizada em relação aos efeitos digitais usados nos arrasa-quarteirões atuais, e a iluminação escura é para torná-los menos aparentes e esconder sua artificialidade ainda óbvia. O destaque do bom elenco vai para a fenomenal composição de Johnny Depp como Jack Sparrow, o pirata em busca de vingança que ajuda o casal central. O rei dos personagens marginais, esquisitos ou alternativos (como queiram chamar) volta pela primeira vez em muitos anos a participar de uma super-produção hollywoodiana e dá um show de super-representação afetada, rocambolesca, ao mesmo tempo engraçada, cruel e tristonha. Das atuações mais saborosas do ano.
OBS: Depois de rolarem todos os créditos, há uma ceninha de uns 30 segundos em que se muda o sentido do fim do filme e é dada a deixa para uma continuação.
# PIRATAS DO CARIBE (Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl )
EUA, 2003
Direção: GORE VERBINSKI
Roteiro: TED ELLIOTT / TERRY ROSSIO
Produção: JERRY BRUCKHEIMER / PAUL DEANSON
Fotografia: DARIUSZ WOLSKI
Montagem: ARTHUR SCHMIDT / STEPHEN E. RIVKIN / CRAIG WOOD
Música: KLAUS BADELT
Elenco: JOHNNY DEEP, ORLANDO BLOOM, KEIRA KNIGHTLEY, GEOFFREY RUSH, JONATHAN PRYCE, JACK DAVENPORT.
Duração: 143 min
site: http://disney.go.com/disneypictures/pirates/index.html