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PERDIDOS NA TRADUÇÃO

10.10.2003
Por Carlos Alberto Mattos
PERDIDOS NA TRADUÇÃO

Maratona encerrada, tabelas amarfanhadas e retinas fatigadas, os cinéfilos cariocas vão voltando à anormalidade do resto do ano. O Festival do Rio mais uma vez empolgou a cidade, fazendo com que muita gente trocasse o DVD pelas salas de cinema. Arrebentou nossa rotina audiovisual com uma torrente de imagens do Afeganistão, Palestina, Itália, Sudeste asiático, Índia, Camboja. E mais os documentários black americanos, as meio cansadas travessuras gays, o país Welles e as novidades brasileiras da temporada.



Agora restam, junto com o cansaço, as memórias dos bons e maus momentos. E uma má lembrança com certeza vai perdurar por um tempo, como um trauma: o pesadelo das legendas eletrônicas. Não foram poucas as ocasiões em que os pequenos retângulos inferiores comprometeram seriamente o prazer oferecido pela tela maior.



Dos muxoxos aos gritos, as platéias não deixaram de manifestar sua desaprovação a um sistema que parece só piorar a cada ano. Dessa vez aconteceu de tudo. Alguns problemas têm origem na própria produção das legendas. São os erros de tradução (não tão freqüentes, cabe ressaltar), os erros de gramática e grafia (bem mais assíduos) e os equívocos de edição – em parte resultantes de diferenças entre as listas de diálogos enviadas previamente pelos produtores e os filmes propriamente ditos. Daí muitos trechos sem tradução ou com ordenação desencontrada.



Mas a maioria dos transtornos deveu-se mesmo ao chamado “lançamento” das legendas, ou seja, o envio, frase por frase, do computador para a tela, feito manualmente. Nesse aspecto, das sessões a que compareci, poucas se salvaram da catástrofe. A confusão na cabeça do espectador era tamanha que todos os filmes pareciam, em algum momento, serem roteirizados por Peter Greenaway. Ora as legendas se adiantavam, anunciando surpresas futuras, ora se retardavam como lesmas, causando um estranho deslocamento entre o que era mostrado e o que parecia ser dito. Em ambos os casos, havia sempre a hora terrível da correção: ou as legendas disparavam para recuperar o atraso, ou desapareciam misteriosamente até as imagens chegarem ao ponto.



Minha impressão era de que estávamos entregues a “lançadores” desfamiliarizados com o idioma e, até mesmo, com a prática de ver filmes. Numa sessão do afegão Osama, por exemplo, percebi que as legendas em português tinham sido traduzidas do inglês, enquanto a cópia do filme tinha legendas em francês. E o(a) lançador(a) demonstrava não entender patavina de francês, sua única referência lingüística para se localizar dentro do filme. As referências visuais simplesmente pareciam não existir. Após uma exibição do alemão Setembro (cópia sem qualquer legenda), aliviado por uma tradução razoavelmente eficaz, parabenizei a lançadora e fiquei estupefato ao ouvi-la admitir que tinha feito o trabalho na base da intuição, sem conhecer do alemão nem um “Volkswagen”.



Ou seja, estávamos mesmo entregues ao sexto sentido das lançadoras e a um eventual olho clínico dos lançadores. O resultado tocou o limite da tolerância do público, que só se conforma mesmo porque, do contrário, seria voltar às legendas em inglês e francês do passado. Mas pode existir outra saída. O sistema de legendagem eletrônica foi criado para funcionar em sincronia automática com a projeção do filme. Não é só o Primeiro Mundo que tem esse privilégio. No Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, as legendas fluem macias e precisas, com intervenção manual mínima, de tal maneira que nem as percebemos como algo exterior à cópia do filme. No Brasil, contudo, isso nunca chegou a ser implantado, por razões que se perdem entre o técnico e o financeiro.



Mesmo assim, é possível sonhar com uma performance menos frustrante. Basta confiar o serviço de lançamento, senão aos próprios tradutores, a pessoas com melhor domínio do idioma falado ou legendado no filme. E que tenham sensibilidade para não lançar uma frase como “Você quer dançar?” sob a imagem, digamos, de uma criança chorando diante da morte dos pais.

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