O corpo, mesmo que eventualmente por meio da negação, é um elemento fundamental no cinema de Spike Jonze. Em “Ela”, filme que estreia amanhã, Theodore, o protagonista da história ambientada num futuro próximo, se apaixona por Samantha, uma compreensiva voz feminina gerada num sistema operacional avançado, e sofre, de determinado momento em diante, devido à impossibilidade de materializar essa presença numa imagem, de torná-la palpável. Samantha também demonstra dificuldade em lidar com essa impotência e chega a convencer uma moça a emprestar o corpo, de modo a dar forma à sua voz. Em “Quero ser John Malkovich” (1999), de Jonze, o titereiro Craig descobre uma porta que dá acesso, ainda que por breves instantes, à cabeça do ator John Malkovich, que, por sua vez, perde a autonomia sobre seu próprio corpo. Craig fica fascinado pela chance de “estar em outra pele, de sentir diferente”. E a oportunista Maxine consegue perceber a presença da mulher por quem nutre interesse dentro do corpo de Malkovich.
Trata-se de um instigante jogo de apropriação do outro (um corpo ou uma obra), um tema caro a Spike Jonze. Pode ser encontrado em “Adaptação” (2002), mais um de seus filmes, no qual um roteirista padece durante a tortuosa transposição de um livro para o cinema e acaba se incluindo como personagem na versão que cria. Em “Ela”, o trabalho de Theodore consiste em confeccionar cartas de natureza íntima. Para tanto, ele se coloca nos lugares de pessoas variadas. Os personagens de Jonze costumam se expressar através dos outros. Afirmam suas identidades em meio a processos atravessados por crises. Samantha, numa passagem, se pergunta se seus sentimentos são reais ou se apenas fazem parte de uma programação. Independentemente da resposta, Samantha conclui que “o passado é só uma história que contamos a nós mesmos”. O cineasta evidencia, portanto, que tudo é uma construção (nesse sentido, uma ficção).
Spike Jonze se distancia dos clichês ao abordar a oposição entre real e virtual. Se na primeira metade traz à tona uma sequência de sexo virtual tradicional, meteórico e destituído de conexão verdadeira, no decorrer da projeção mostra como o melancólico Theodore, abalado pelo final de um relacionamento longo, se sente cada vez menos sozinho na companhia de uma “presença” invisível como a de Samantha. O sexo entre eles não é impessoal ou mecânico. Os sentimentos se revelam soberanos em “Ela”, um filme dolorosamente romântico em que os personagens não são afetados por preocupações habituais como dinheiro reduzido ou falta de emprego. Eles pairam acima dos problemas práticos do cotidiano, que não interferem em suas jornadas. Não por acaso, muitas cenas se passam em arranha-céus, descortinando panorâmicas da cidade (Los Angeles). Com cinco indicações ao Oscar – melhor filme, roteiro original (Spike Jonze), trilha sonora (William Butler e Owen Pallett), canção original (“The moon song”, de Karen O e Jonze) e design de produção –, “Ela” soma pontos com a ótima e adequadamente econômica interpretação de Joaquin Phoenix em elenco que reúne, além da peculiar participação de Scarlett Johansson, encarregada da voz de Samantha, Amy Adams, Rooney Mara, Olivia Wilde e Chris Pratt.
Crítica publicada no jornal O Globo em 13/02/2014