Críticas


EU FUI A SECRETÁRIA DE HITLER

De: ANDRÉ HELLER E OTHMAR SCHMIDERER
31.10.2003
Por Ricardo Cota
A PALO SECO

Diante de um filme como Eu Fui a Secretária de Hitler, conceitos cristalizados pela mediocridade contemporânea, como “cinema-pipoca”, são reduzidos a pó. Nesse filme, talvez o mais enxuto da história do cinema, os realizadores austríacos André Heller e Othmar Schmieder não fizeram qualquer tipo de pacto com o público. Nada de concessões ou convencionalismos documentais. O filme é duro, direto, difícil mesmo. Vai estragar a noite de muita gente, que certamente sairá indignada do cinema, desejosa de atirar pipocas ao crítico. Tudo bem, o crítico também gosta de pipoca.



Eu Fui a Secretária de Hitler é um filme a palo seco. Durante 90 minutos, Traudl Junge, de 81 anos, relata diretamente para a câmera a experiência de ter sido, de 1942 a 1945, a secretária particular de Adolf Hitler. Foram dez horas de entrevistas divididas em três sessões que só podem ser percebidas pelas mudanças de echarpe da protagonista. As únicas intervenções de linguagem mais expressivas ocorrem quando vemos Junge revendo alguns trechos do depoimento, imagens curtas que evidenciam a compulsão pelo acerto de contas com a história e com a própria vida.



Traudl morreu curiosamente um dia depois da première mundial do filme no Festival de Berlim de 2002, fulminada por um câncer no pulmão. Seu depoimento não chega a ser inédito. Historiadores já a haviam entrevistado e muito do que está no filme era de conhecimento público. A novidade é que em Eu Fui a Secretária de Hitler, Traudl Junge transcende o relato histórico e oferece uma visão pessoal que surpreende pela vivacidade do olhar, pela clareza das descrições e pela mais profunda honestidade consigo mesma.



Hoje, depois de conhecermos as atrocidades do regime nazista, é difícil acreditar que muitos alemães não tinham consciência dos crimes praticados contra judeus, imigrantes, comunistas e homossexuais. Eu Fui a Secretária de Hitler exige uma contenção de julgamentos prévios, ainda que inevitáveis em certos casos. Quem vencer essa resistência, no entanto, receberá uma lição sobre os efeitos devastadores do discurso abstrato do poder sobre uma massa descrente, empobrecida, ferida no orgulho nacional e cega por ascensão social.



No início do artigo “O Fascismo Eterno”, publicado em Cinco Contos Morais (Editora Record), o insuspeito Umberto Eco confessa: “Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o primeiro prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos – o que vale dizer para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: ‘Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino da Itália?’ Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.” Segue-se uma análise sobre o impacto social do fascismo a partir de sua articulação metódica, funcional e triunfalista. “O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos”, conclui Eco.



No mesmo ano de 1942, após uma entrevista com o Füher, Traudl Junge, então com 22 anos, foi contratada como secretária. Suas motivações, de certa forma confirmam as projeções fantasiosas que erigiram e sustentaram os arquétipos nazi-fascistas. Filha de uma mãe divorciada e distante, Traudl foi criada por um avô autoritário e rude. Buscava independência financeira. Encontrou mais. Encontrou a imagem idealizada do pai protetor, provedor e poderoso. Mas encontrou também o homem que odiava flores por não gostar de coisas mortas ao seu redor e não suportava ser tocado. O homem que não falava a palavra “amor” e jamais fez qualquer comentário sobre judeus, pelo menos com Traudl. “Ele não pensava em dimensões humanas, apenas em abstrações como nação e Reich”, diz a secretária.



O preço da proximidade Traudl pagaria nos últimos dias em que viveu na companhia de Hitler a onze metros do chão, num macabro bunker, em Berlim. É no terço final, quando descreve esses dias, que Eu Fui a Secretária de Hitler atinge seu clímax. O apuro das descrições de Junge é tão forte que justifica a opção dos diretores de apenas deixar sua fala em cena. Junge mostra a desolação do Füher que só tem a oferecer aos próximos cápsulas de cianureto (“O herói fascista espera impacientemente pela morte. Em sua impaciência , é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar o outro à morte”, lembra Umberto Eco). Descreve ainda a personalidade delirante de Eva Braun, que provoca um casamento com o Füher no bunker em meio aos bombardeios finais da Segunda Guerra. As lágrimas de horror de Goebbels, o olhar assustado e precocemente consciente de sua filha, de apenas dez anos - esta sim a mais inocente das vítimas, com quem por sinal Junge divide seu momento de maior emoção – constroem o clima de desespero que culminará com o suicídio de Hitler cometido logo após seu último, e esdrúxulo, pedido.



Muitos filmes já foram vistos sobre o nazismo. Muitas imagens, muitas interpretações. Poucos, no entanto, conseguiram mostrar de forma tão intensa o esmagamento de um dos mais perversos regimes políticos da história da humanidade. E não precisou muito. Bastou que o cinema cumprisse a mais singela de suas funções: a de registrar, a de dar voz à vida. O grande roteirista Jean-Claude Carrière conta que certa vez impressionou-se ao assistir a uma projeção numa tribo africana cuja cultura proibia a adoração de imagens. Tão logo iniciou a sessão, o público relutou em sair da sala. Simplesmente permaneceu de olhos fechados ao longo de toda a sessão, o que lhe fez pensar que aquela era a mais perfeita tradução do cinema. Em cada cabeça, passa-se um filme diferente, com leituras particulares. O relato de Traudl Junge construirá na cabeça de cada um uma imagem distinta dos últimos dias de Hitler, sem reconstituições, sem adaptações que facilitem ou induzam a qualquer interpretação. Pode ter exigido pouco dos realizadores, mas exige muito do público e mais ainda da crítica. Lamentei apenas não saber alemão para interpretar mais a fundo as palavras de Traudl Junge. Da pipoca, nenhuma falta.



#EU FUI A SECRETÁRIA DE HITLER (IM TOTEN WINKEL: HITLERS SEKRETÄRIN)

Áustria, 2002

Direção:ANDRÉ HELLER E OTHMAR SCHMIDERER

Produtores:DANNY KRAUSZ E KURT STOCKER

Fotografia:OTHMAR SCHMIDERER

Montagem:DANIEL PÖHACKER

Duração:90 minutos

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