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APOSTA NA DIVERSIDADE

29.10.2003
Por Carlos Brandão
APOSTA NA DIVERSIDADE

O recém-terminado Festival de Nova York mais uma vez se confirmou como um evento que procura reunir o que de melhor aconteceu na área cinematográfica no ano. Considerada por muitos a mostra cinematográfica mais sofisticada dos Estados Unidos, o festival sempre se caracterizou por apresentar uma criteriosa seleção do foi exibido nos grandes festivais que a antecedem – como Sundance, Berlim, Cannes e Veneza – acrescido de obras criativas e inovadoras garimpadas pelos programadores do Lincoln Center Film Society no mercado cinematográfico mundial.



Desta vez, constaram do programa 22 filmes de 15 países . Entre eles, a maior representação foi a dos Estados Unidos – o que é raro – com seis filmes ; a cinematografia americana também abriu o festival com Mystic River, de Clint Eastwood, um drama sobre o reencontro de três amigos de infância, após a morte trágica da filha de um deles. Cada um deles tem uma razão diferente para o reencontro. Decorrido o tempo, os três, já entrados nos quarenta, se ocupam com o cotidiano de suas vidas : Sean Devine (Kevin Bacon) é um policial; Jimmy Marcus (Sean Penn), um ex-presidiário, cuida de uma pequena loja ; Dave Boyle (Tim Robbins), por sua vez, é um homem traumatizado e amargurado. Trabalhando como um faz-tudo, ele não consegue esquecer que foi seqüestrado e agredido sexualmente quando era ainda menino, num dia em que brincava com os outros dois amigos no bairro onde viviam. Com um ritmo lento ditado pela montagem, o filme é uma adaptação do livro de Dennis Lehane e foi filmado em Boston, cidade atravessada pelo rio Mystic, que empresta seu nome ao filme.



Eastwood revela que não aceitou a sugestão dos produtores para que fizesse as locações no Canadá, onde os incentivos fiscais possibilitariam uma boa economia na produção : “Para isso eu teria que fazer o Canadá ficar parecido com Boston, o que poderia acabar encarecendo ainda mais o projeto”, explica, complementando que o orçamento pequeno acabou fazendo com que usasse mais criatividade no seu filme, característica principal dos (ainda) chamados filmes independentes.



O diretor diz que estava realmente muito atraído pelo tema do filme. “Eu sempre quis abordar a questão do abuso sexual na infância e como isso pode afetar as pessoas para todo o sempre”, afirma. Paralelamente ao tema principal, Mystic River traça uma visão amarga, pessimista e ambígua do atual meio social americano pós 11 de setembro, discutindo valores ligados à igreja, à polícia e à cultura da violência.



21 Gramas, do festejado diretor mexicano Alejandro González Iñarritu, uma produção falada em inglês e filmada nos Estados Unidos, já tinha tido muito sucesso no último Festival de Veneza. Acabou recebendo os maiores aplausos do NYFF, do qual foi a peça de encerramento. Com Benício del Toro, Sean Penn (melhor ator no festival italiano) e Naomi Watts nos papéis principais, o filme é um drama pesado, ao contrário do seu título. Como diz um dos personagens : “21 gramas é o peso que um corpo perde na hora da sua morte”. Apesar desses pesos, o filme não deixa também de ser muito bom. Após ter realizado o ótimo Amores Brutos, Iñarritu mostra no seu novo trabalho que o talento demonstrado na sua estréia, não foi um mero acaso.



21 Gramas é uma espécie de mosaico que junta três destinos através de fragmentos esparsos : Jack, interpretado por Benício Del Toro, é um criminoso regenerado e convertido à religião evangélica. Um dia, atropela e mata um homem e suas duas filhas; Paul, vivido por Sean Penn, é um professor de matemática cardíaco, vivendo na corda bamba entre a vida e a morte à espera de um doador que possa salvar-lhe a vida, o que acaba acontecendo quando ocorre o atropelamento; Christine (Naomi Watts) é uma burguesa, mãe de duas filhas, agora distante do seu passado de drogada . É também a mulher que vai perder a família inteira. A história é apresentada de uma maneira que mescla de forma desordenada presente, passado e futuro, onde os elementos predominantes são os sentimentos conflitantes dos personagens e a busca do envolvimento do espectador na montagem mental da história.



Iñarritu disse na coletiva após a sessão que, a seu ver, 21 Gramas segue uma linha clássica, onde cada cena é uma célula: “mas, no final, tudo forma uma arquitetura que desabaria se faltasse cada uma de suas peças”, explicou. Além desses, outros destaques da representação americana – também exibidos no último Festival do Rio – foram Elefante (Elephant), a versão ficcional de Gus van Sant para a tragédia de Columbine, vencedor da Palma de Ouro em Cannes; e A Bruma da Guerra (The Fog of War), de Errol Morris, um documentário sobre Robert Strange McNamara, também mostrado na Croisette. O filme, que foi apresentado no Festival de Nova York numa sessão especial, retrata os períodos (Kennedy e Johnson) em que McNamara ocupou a função altamente estratégica de Secretário de Defesa dos Estados Unidos e influenciou a guerra e a paz do mundo.



A Bruma da Guerra tem muitas qualidades, inclusive por trazer à tona pela primeira vez a verdadeira dimensão dos ataques ao Japão que culminaram com as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki : McNamara revela em seu depoimento que antes dos dois ataques, aviões americanos despejaram toneladas de bombas incendiárias em 65 cidades japonesas, praticamente destruindo-as, inclusive Tóquio. “Custei a acreditar nas revelações de McNamara”, disse Morris na entrevista após o filme, complementando que, pelos cálculos do poderoso ex-secretário de defesa, pelo menos 1 milhão de civis devem ter sido mortos naquelas operações comandadas por ele e pelo ultra falcão da aeronáutica norte americana, o general Curtis LeMay.



Outros dois grandes títulos vindos de Cannes, foram As Invasões Bárbaras, que deu a Denys Arcand o prêmio de roteiro no festival francês e retoma a história do seu bem sucedido filme de 86, O Declínio do Império Americano; e Dogville, de Lars von Trier, filme realizado completamente fora dos padrões tradicionais, em mais uma inovação do criador do Dogma 95.



A Flor do Mal (The Flower of Evil), de Claude Chabrol, que concorreu ao Urso de Ouro na última Berlinale, representou a França ao lado de Since Otar Left, de Julie Bertucelli e Raja, de Jacques Doillon, este uma metáfora sobre as relações franco-marroquinas dominadas (ainda) por laços colonizador/colonizado. Entre os europeus, destacaram-se ainda Free Radicals, de Barbara Albert, da Austria; Pornography, de Jan Jakub Kolski, da Polônia; e o muito aguardado Bom Dia, Noite do italiano Marco Bellocchio que, no ano passado, impressionou a platéia com seu iconoclasta O Sorriso de Minha Mãe. O novo filme de Bellocchio refaz os passos do atentado que culminou com o assassinato do Primeiro Ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas em 1978 e que mudou, em alta dose, a história política italiana a partir do episódio.



Mas, certamente, um dos melhores filmes da representação européia foi Distante, de Nuri Bilge Ceylan, da Turquia, vencedor em Cannes do Grand Prix do Júri e Prêmio da Fipresci, que também o escolheu como o Melhor Filme do Ano. Após ter realizado três filmes voltados para aspectos mais ligados à natureza – Cidade, Pequena Cidade e Nuvens de Maio – Ceylan traz suas preocupações para a questão social urbana e para os problemas decorrentes da solidão e da desesperança. A relação entre os protagonistas é marcada pela incomunicabilidade e os seus sentimentos são expressos muito mais pelo silêncio do que pelas palavras.



Na entrevista de apresentação do filme, Ceylan disse que quis fazer um filme sobre o vazio da vida e sobre a solidão que envolve as pessoas, principalmente aquelas que vivem nas grandes cidades. O diretor não nega a grande influência de Tarkovski no seu trabalho, marcado por um ritmo lento acentuado pelo realismo poético. O cineasta turco conta que passou a ver a vida de uma forma diferente depois de ter assistido Solaris, num dia em que estava em Londres sentindo-se muito sozinho. “Acho que o cinema dele ajuda a dar sentido à vida, não por ser um cineasta feliz, mas justamente porque não esconde a dor de viver”, afirma. O ator Mehmet Emim Toprak, que dividiu com Muzaffer Ozdemir o prêmio de melhor ator em Cannes, morreu há pouco tempo num acidente de carro. O ator, de 28 anos, era primo de Ceylan e havia trabalhado com ele em todos os seus filmes.



Do Oriente – cujas filmografias sempre ocupam um espaço generoso no festival novaiorquino – foram mostrados PTU, de Johnnie To (Hong Kong), que teve sua premiere no último Festival de Berlim ; Mansion By the Lake, de Lester James Peries (Sri Lanka); e Ouro Carmim, do iraniano Jafar Panahi, que fez muito sucesso na edição de 99 do NYFF com O Círculo. Baseado numa história real, o filme segue um entregador de pizza em Teerã, tendo como pano de fundo um desfile de imagens marcantes do regime teocrático repressivo do país.



Mas um dos títulos da filmografia oriental que certamente serão lembrados desta 41a edição do NYFF, será certamente Adeus, Dragon Inn, de Tsai Ming-liang (Taiwan), uma história sobre as últimas sessões de um antigo cinema. O filme surpreendeu a platéia que aparentemente não sabia como classificar o novo trabalho de Ming-liang. Tendo como pano de fundo o retrato melancólico do fechamento de mais uma daquelas salas imensas, com capacidade às vezes para mais de 1000 pessoas, Liang descreve a passagem inexorável do progresso (?) de forma diferente, com um quê de fantástico e/ou surrealismo, mas sempre triste. Poucos mais do que nós, brasileiros, podem se dizer testemunhas da tristeza representada pelo fim de tantas salas maravilhosas como aquela mostrada por Ming-liang.



A trama segue um homossexual que entra num velho cinema tentando encontrar um parceiro para um programa. Já com seu fim decretado, a sala de exibição está praticamente vazia: além da faxineira e do projecionista, a platéia se compõe de três ou quatro pessoas que podem estar ali pelo filme ou talvez também estejam à procura de um encontro. A película que está sendo mostrada nesse cinema em estado terminal é Dragon Inn, um sucesso do passado sobre artes marciais. Num determinado momento, a câmera se desloca para o palco e filma, num plano de cerca de quatro silenciosos minutos, a platéia totalmente vazia. Durante esses minutos agoniantes, os espectadores não conseguem fugir da reflexão sobre o fim do cinema como conhecemos hoje.



Adeus, Dragon Inn, que concorreu ao Leão de Ouro no último Festival de Veneza, é fiel ao estilo do diretor de O Rio e O Buraco, com o uso de longos planos parados, narrativa lenta e clima pesado. O desalento característico do estilo de Ming-liang é acentuado pelo forte temporal que desaba na rua deserta da noite de alguma cidade do Oriente.



O destaque dessa tradicional seção do festival foi O Melhor da Juventude de Marco Tullio Giordana, um filme de 366 minutos originalmente feito para a televisão, que segue a vida de dois irmãos do final dos anos 60 até os dias de hoje, tendo como pano de fundo eventos cruciais da história recente italiana. O filme, mostrado no último Festival de Cannes, no Festival do Rio e na Mostra BR de São Paulo, foi adquirido pela Miramax e vem emocionando o público por onde tem passado.



Destacaram-se ainda a exibição de Piccadilly, de Ewald André Dumont, de 1929, mostrado numa sessão solene com acompanhamento musical; Stalingrad, de Sebastian Dehnhardt, da Alemanha e uma mostra do mestre Yasujiro Ozu, o grande homenageado do festival pelo seu centenário de nascimento. O Festival de Nova York, que em sua primeira edição, em 1963 incluiu na programação Barravento, do então estreante Glauber Rocha, mais uma vez não selecionou filmes do Brasil. A última inclusão de longas metragens brasileiros no Festival foi em 2000, com o controvertido Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi.



Por último, acresce considerar que neste ano deve ter havido um cuidado maior dos programadores do evento na escolha de certos filmes, tendo em vista o atual clima psico-sócio-político dominante no país depois do 11/09 . É possível que por isso tenham deixado de fora (o que raramente aconteceu no passado) filmes com criticas mais ácidas aos Estados Unidos, como, entre outros, Às Cinco da Tarde, da iraniana Samira Makhbalbaf.

Embora, sem deixar de reconhecer uma certa contradição nessa premissa quando vemos programados Dogville, Elephant e as Brumas da Guerra. Se estivermos errados, melhor assim.

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