Críticas


O PASSADO

De: ASGHAR FARHADI
Com: BÉRÉNICE BEJO, TAHAR RAHIM, ALI MOSSAFA, PAULINE BURLET.
07.05.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Decepciona pelos truques estereotipados de roteiro: revelações que escondem outras meias verdades ad nauseam

Quase toda história contada implica em revelações que sustentam seu interesse: muitas vezes, sobre o que vai acontecer a partir da situação inicial que abre a narrativa (seja por surgimento do acaso ou por uma evolução causal de consequências que se sucedem); outras vezes, as revelações virão dos eventos anteriores ao momento no qual o narrador decidiu começar sua narrativa. Também pode haver surpresas quanto ao passado e sua interferência no presente e no futuro dos personagens. Tradicionalmente, romances e filmes do gênero “policial” escondem os antecedentes que só serão revelados ao longo - ou mesmo no desfecho - da obra. Em tais casos o leitor/espectador sabe que está em um jogo de esconde-revela que poderá divertir - mais ou menos - pela maior ou menor criatividade do narrador na recriação dos esquemas clássicos do gênero e pelos dispositivos utilizados para “enganar” o leitor – sem que este se sinta (muito) enganado.

Um exemplo desastroso de mau uso de dados prévios ao momento do enredo que se desenvolve na tela ficou célebre no filme Pavor nos Batidores (Stage Fright, 1950), de Hitchcock. O mestre, que nem gostava de enredos do tipo “whodunit?” (quem matou?), arrependeu-se de ter inserido em seu filme um flashback com cenas que não haviam acontecido de fato na história, uma espécie de desonestidade para com o espectador: mais do que omissão, uma mentira. Nosso respeitado colega da crítica, Pedro Butcher, em conversa informal, apontou que via algo semelhante no roteiro do filme anterior de Asghar Farhadi, o premiadíssimo “A Separação” (2011), quanto ao episódio em que uma cuidadora de um personagem idoso saía para a rua e sofria o impacto de um automóvel, elemento que ela só revelaria aos demais personagens (e ao espectador) bem mais adiante, sendo que esta ocorrência omitida durante algum tempo trazia uma série de consequências indesejáveis para os demais, confundindo atitudes alheias e suas consequências. Se, por um lado, não foi assim que percebi o filme de 2011, neste O Passado, que também vem colhendo louvores, indicações e prêmios, reconheço um enorme abuso do recurso omissão-revelação que quase o aproxima do gênero policial.

Há um excesso de episódios ocultados-mas-posteriormente-revelados ao longo do filme, evidenciando que o cineasta se compraz com um esquema de truques estereotipados no roteiro; e que visam envolver o espectador em um pequeno labirinto de pistas falsas que vão sendo parcialmente desmascaradas. Parcialmente, sim, porque cada revelação embute uma meia verdade que, por sua vez, também será revista de forma igualmente incompleta... para mais adiante surgir nova correção (relativa) de rumo até... quase que não chegar a lugar nenhum. Não, não se trata de um novo “Rashomon” de verdades subjetivas que se entrechocam sem uma conclusão definitiva quanto ao que seria “A verdade”. Poderia se tratar, no máximo, de um retrato sobre o quanto cada um dos personagens esconde mas revela - parcialmente - para manter ocultas outras atitudes e motivações (geralmente mesquinhas) que eles mesmos reprovam e que não desejariam totalmente expostas. Por algum tempo o filme parece desejar tratar disso no que diz respeito às personagens de Bérénice Bejo e de Pauline Burlet, que fazem mãe e filha adolescente, mais especialmente no caso de ‘Lucie’, a filha. Mas o enredo dá tantas voltas que deixa a impressão de que é o formato em si mesmo que interessa e agrada ao roteirista, acabando por perder o foco – ou revelar que ele também estava ocultando do espectador o foco central do que pretendia privilegiar.

Pois, aparentemente, a situação de base sugerida na abertura do filme seria o retorno de Ahmad (Ali Mosaffa) a Paris para assinar os papéis de divórcio de Marie, a mãe de Lucie e da pequena Lea - que não são filhas de Ahmad. Uma série de conversas entre eles informam que ele já estivera para vir do Irã anteriormente, mas não o fizera; e que o divórcio poderia ser resolvido por carta, procuração ou qualquer recurso legal assemelhado. Mas Marie teria uma intenção oculta (ou mais de uma): logo fica evidente que ela deseja que Ahmad converse com Lucie (que, quando mais jovenzinha, mantinha ótimo relacionamento com ele na época em que Marie e Ahmad viviam juntos).

Ahmad seria então o personagem-guia do espectador, uma espécie de “último a saber” de todos os eventos que levaram Lucie a se indispor tanto com a mãe e seu novo namorado, Samir (Tahar Rahim). Para que se casem Marie precisar oficializar o divórcio. Aos poucos, entretanto, o foco escorrega deste núcleo familiar (que ainda envolve Fouad, um menino filho de Samir, e a outra filha de Marie, de idade aproximada à de Fouad). E o filme passa a dar destaque ao “núcleo” de Samir - que tem uma esposa em coma e uma lavanderia, tocada por ele e por uma empregada.

Quando o filme termina com a atenção em um foco completamente diverso do inicial, a habilidade (apenas relativa) do cineasta com suas imagens e com o encadeamento do enredo pode até convencer o espectador mais envolvido pelos ótimos desempenhos dos atores de que assistiu uma espécie de “La Ronde” em que uma situação leva a outra que leva a outra mais...e assim por diante... Mas o que resulta é uma pequena charada visual onde o que importa não são mais a atitudes ocultas/reveladas de todos os demais personagens, mas “o que teria realmente acontecido...?” (não a Baby Jane do velho filme grotesco/maneirista de Aldrich), mas a uma personagem que é a grande ausente-presente, uma espécie de ‘Rebecca’ diversa da do filme hitchcockiano baseado em Daphne Du Maurier: porque totalmente esquecível.

SPOILER: NOS PRÓXIMOS PARÁGRAFOS COMENTA-SE O DESFECHO DO FILME

O grande barato vai ser discutir se a mulher em coma apertou a mão do marido? E se sua lágrima significa alguma compreensão nas trevas de um coma? Este filme tinha mesmo que ganhar um prêmio do Vaticano, pois o desfecho chega a sugerir um questionamento sobre eutanásia(!?)

Confundem-se assim as atitudes e responsabilidades de Lucie ao não desejar o casamento de sua mãe com Samir - e que antecederam o chamado “tresloucado gesto” de Céline. Quem é essa mesmo? A mulher de Samir, em coma após tentar suicídio! Depois da tentativa de Céline, Lucie passa a achar mais insuportável a hipótese de mais um casamento de sua mãe, considerando a responsabilidade que ela teria tido (ou não?) na tentativa de suicídio de Céline - que, por sua vez é comentada como “depressiva”, em uso de medicação psiquiátrica e que já havia tentado suicídio anteriormente. Como se vê, Farhadi, mais do que revelar a complexidade dos relacionamentos e atitudes humanas, atira em todas as direções para despistar e criar novas pistas e pontas soltas; e no lugar da revelação de uma verdade objetiva - ou da demonstração de tal impossibilidade - ele vai apenas inverter todo o interesse que vinha sendo mantido na parte inicial do jogo de gato-e-rato com a plateia.

O grand finale (?) é a resposta que Samir queria obter do passado: se Céline se importava com ele e que por isso teria tentado suicídio ao saber que ele tinha um caso com... Marie? Ou com a empregada da lavanderia que também aprontou alguma coisa contra a frágil Céline?

A idealização de um – talvez - “suicídio por amor” é de um psicologismo barato que nem novelas de TV sustentariam hoje em dia. E pior, como em “A Separação”, uma personagem de situação social inferior, uma empregada, talvez seja “a mais culpada” dos eventos em cadeia que se sucederam para todos os personagens - que acabam por parecer mais títeres nas mãos do roteirista do que nas de Céline, da empregada ou de Lucie - ou mesmo de Marie.

Um ar de misoginia é o que resta deste filme nem tão hábil e também com roteiro maneirista, uma grande decepção para os que apreciaram “A Separação”. E já se teme que no próximo filme de Farhadi a “chave” de “quem é o culpado?” seja novamente uma mulher, e mais especificamente - e novamente - uma empregada.

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