Críticas


O GRANDE MESTRE

De: WONG KAR-WAI
Com: TONY LEUNG, ZHANG ZIYI
19.04.2014
Por Marcelo Janot
O balé das artes marciais com a assinatura intimista do diretor

Wong Kar-Wai se tornou o mais respeitado e cultuado dos cineastas de Hong Kong após criar uma marca autoral com uma série de filmes intimistas que incluíam obras-primas como “Amor à flor da pele” e “Felizes juntos”. Em sua obra, reflexões sobre a memória, o passado e a solidão são acompanhados por uma estética instigante que traduz visualmente a fragmentação e a dilatação do tempo emocional dos personagens. Aparentemente, um cinema pouco afeito a épicos de artes marciais. Mas em 1994, com o filme “Cinzas do Passado”, Wong já havia demonstrado capacidade para equilibrar a ação inerente ao gênero com reflexões filosóficas sobre as lutas e desventuras amorosas.

O mesmo se observa, duas décadas depois, em seu retorno ao universo das artes marciais com “O Grande Mestre”. Tematicamente, ao misturar reflexões sobre a luta com uma história de amor proibido, o filme guarda certo parentesco com “O tigre e o dragão”, de Ang Lee, que fez grande sucesso em 2000 ganhando o Oscar de melhor filme estrangeiro e concorrendo a melhor filme e diretor. Talvez depositando uma expectativa semelhante, os poderosos chefões da Weinstein Films tenham convencido o diretor a passar uma tesoura em seu filme, reduzindo-o de 130 para 108 minutos e tornando a história mais linear e palatável para a suposta capacidade de compreensão do público americano. Ao contrário da China, onde a versão original fez grande sucesso, ele não foi bem de bilheteria nos Estados Unidos (menos de US$ 7 milhões, contra US$ 128 milhões de “O tigre e o dragão”) e apesar de indicado nas categorias de fotografia e figurino, saiu do Oscar de mãos vazias.

A cópia que está sendo lançada no Brasil, com 123 minutos de duração, escapou da heresia cometida pelos americanos, mas ainda assim não é a mesma que os chineses assistiram. Trata-se da “versão internacional” que estreou no Festival de Berlim do ano passado e circulou o mundo. Com sete minutos a menos, ela tem poucas mas fundamentais diferenças em relação à chinesa, como narrações explicativas desnecessárias que, se por um lado não tiram o brilho do filme, por outro o impedem de ser colocado no mesmo patamar das outras obras-primas de Wong Kar-Wai.

“O Grande Mestre” romantiza a saga de Ip Man, um personagem importante na história das artes marciais chinesas, conhecidas popularmente no ocidente como kung fu (ele foi professor de Bruce Lee). No filme, Ip Man (interpretado pelo galã Tony Leung, ator-fetiche dos filmes do diretor) aparece pela primeira vez enfrentando uma dúzia de oponentes numa luta de rua. A cena noturna marcada pela iluminação estilizada, sob a chuva, com coreografias elaboradas e um desenho sonoro que confere um ar mítico ao embate, cria uma atmosfera deslumbrante que se repetirá em outros momentos da trama. Um de seus oponentes é a belíssima Gong Er, num papel que permite a Zhang Ziyi reviver a destreza atlética mostrada em “O tigre e o dragão”. As lutas possuem mais realismo que as do filme de Ang Lee, sem vôos exagerados e mais próximas de uma estética de balé, com ênfase nos closes de pés e mãos.

Entre idas e vindas no tempo, vemos sonhos irem por água abaixo em função da invasão japonesa em 1938, numa guerra sangrenta que enfraqueceu a tradição das artes marciais no país. Ip Man e Gong Er passam a travar batalhas pessoais tendo como pano de fundo as transformações políticas na China e Hong Kong, até que o filme desemboca num romantismo que permite a Wong Kar-Wai exercitar o que melhor sabe fazer: se valendo de dois dos temas mais belos compostos para o cinema por Ennio Morricone na trilha sonora (“La donna romântica”, do filme “Como aprendi a amar as mulheres”, e “Deborah’s theme”, de “Era Uma Vez na América”) , ele utiliza um botão de casaco como elo entre o presente e as reminiscências de um amor interrompido. É comovente, delicado e nos deixa com a certeza de que “O Grande Mestre” é bem mais que um filme de kung fu.

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