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A ÁFRICA, ENFIM

07.11.2003
Por Carlos Alberto Mattos
A ÁFRICA, ENFIM

Estende-se até o dia 16 de novembro, no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio), o extraordinário panorama de cinema africano preparado por Paulo Mattos e Vik Birkbeck. Já era tempo de refazermos algum contato com uma cinematografia que se mantém afastada do nosso convívio, por mais diversificada que tenha sido a oferta do circuito nos últimos anos.



Não vamos encontrar filmes dos consagrados Idrissa Ouedraogo, Ousmane Sembene ou Souleymane Cissé. Em compensação, está sendo revelada a obra vibrante de Djibril Diop Mambéty (1945-1998), uma espécie de cinemanovista senegalês. Ele é apontado pela curadora Vik Birkbeck como “símbolo da modernidade no cinema africano”. Em A Jornada da Hiena (Touki Bouki), de 1973, Mambéty mistura no mesmo caldeirão uma sátira social deliciosa com uma história de amor e uma descrição quase documental de bairros populares de Dakar. Um ex-vaqueiro convertido a motoqueiro sonha com uma viagem de luxo a Paris e tenta várias artimanhas para torná-la realidade, sempre com a cumplicidade da namorada universitária. Mas é um gay montado na grana que vai levá-lo muito perto do êxito.



Sonho e realidade, moral e amoralismo, prosaísmo e poesia não têm fronteiras muito nítidas no cinema de Mambéty. Tudo se dissolve numa alegria imensa de filmar, que se reflete ora na maneira indisciplinada como a câmera enquadra espaços e personagens, ora nos paralelismos desconcertantes criados pela montagem. Na retrospectiva Mambéty destacam-se, ainda, Hienas, de 1992 – uma espécie de Tieta africana, contando a volta de uma mulher, agora rica, à aldeia miserável de onde foi um dia escorraçada, grávida – e Vamos Conversar, Vovó, um original making of do conhecido Yaaba (Avó), de Ouedraogo, em que se pode observar o curioso relacionamento entre o diretor, seus atores e os técnicos europeus.



A questão da identidade no cinema africano, diante da maciça participação de diretores de fotografia, técnicos de som e montadores europeus, será um dos temas em debate neste sábado, 8 de novembro, após a exibição de Hienas (18 horas). Estarão presentes o guitarrista senegalês Wasis Diop, irmão de Djibril Diop Mambéty e autor das trilhas de seus filmes e de muitos outros no Senegal, o realizador Mansour Sora Wade, também senegalês, e o brasileiro Jorge Coutinho, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões.



Mansour Sora Wade é mestre em Cinema pela Universidade de Paris VIII e traz à mostra vários curtas e seu primeiro longa, O Preço do Perdão, um denso conto de ciúmes e heroísmo passado numa aldeia de pescadores. De Burkina Faso, atual capital do cinema africano, vêm dois longas do elogiado Dani Kouyaté, que tematizam conflitos entre o misticismo tradicional, os apelos da modernidade e o exercício da política na África contemporânea. Outro país com representação importante é a África do Sul, com diversos filmes de curta, média e longa-metragem, além da telessérie Yizo Yizo, cuja temática e sucesso vêm sendo comparados aos de Cidade de Deus e Cidade dos Homens no Brasil. Grande parte dos títulos sul-africanos vem da premiada produtora The Bomb Shelter, de Johannesburgo, que enviou à mostra um de seus sócios, o diretor e produtor Angus Gibson, indicado ao Oscar em 1996 pelo documentário Mandela.



O brasileiro Licínio Azevedo, radicado em Moçambique desde 1978, mandou o seu último longa-metragem, Desobediência, docudrama sobre uma mulher implicada judicialmente no suicídio do marido. Alegação dos acusadores: ela estaria possuída por um espírito masculino. Há, ainda, filmes de Cabo Verde, Ruanda, Benin,. Sudão, Tunísia, Costa do Marfim, Egito (com o curioso documentário Apaixonadas por Cinema) e Argélia (o diretor de Guerra sem Imagens, Mohamed Soudani, volta da Suíça à procura de pessoas que foram fotografadas durante os anos recentes em que o país viveu clima de guerra civil).



O francês de ascendência argelina Rachid Bouchareb dirigiu Little Senegal, um dos vários títulos que discutem a relação entre africanos e as grandes metrópoles alcançadas pela diáspora. Neste filme, o monolítico, mas ainda assim expressivo, ator Sotigui Kouyaté – pai do realizador Dani Kouyaté – interpreta um velho guia turístico de uma ilha senegalesa que vai para Nova York no encalço de seus antepassados que emigraram como escravos. Na verdade, Alloune visa o presente: quer encontrar um parente contemporâneo com quem reatar os laços da família estilhaçada. No Harlem ele trava contato com afrodescendentes que mantêm as costas voltadas para suas raízes e buscam uma integração à vida americana pela via do sucesso ou da marginalidade. Quixotescamente – até na figura física -, Alloune procura semear o afeto e o respeito mútuo em terreno pedregoso. Ele é a imagem de um continente que ainda tenta conciliar passado, presente e futuro pela força da espiritualidade.



A mostra África Cinema é parte do multievento Arte da África, cujo núcleo central é uma exposição digna dos maiores museus do mundo. Quem não tirar pelo menos uma tarde-noite para passar no CCBB estará sabotando sua própria formação cultural.

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