Como bem definiu Carlos Reichenbach ao subir ao palco para apresentar seu filme Garotas do ABC, o Festival de Brasília de 2003 não foi o festival dos “veteranos”, como a imprensa definiu a seleção de seis longas de diretores experientes, mas sim dos “cine-poetas”. Ele não poderia ter sido mais feliz. Como há muito tempo não se via, um festival reuniu em sua competição filmes de realizadores comprometidos com o cinema de autor e a experimentação. A equipe de Críticos.com.br teve o privilégio de comparecer em peso ao evento, e oferece aos seus leitores seis textos que tentam exprimir a grandeza do que foi visto em Brasília. Glauber – O Filme, de Silvio Tendler, por Marcelo Janot; Filme de Amor, de Julio Bressane, e O Signo do Caos, de Rogério Sganzerla, por Daniel Schenker Wajnberg; Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach, por Susana Schild; Lost Zweig, de Sylvio Back, por Carlos Alberto Mattos; e Harmada, de Maurice Capovilla, por Rodrigo Fonseca. Boa leitura!
GLAUBER – O FILME, LABIRINTO DO BRASIL
Melhor Filme (Júri da Crítica), Melhor Filme (Júri Popular)
Por MARCELO JANOT
Um dos equívocos mais recorrentes no exercício da crítica cinematográfica é o de reclamar que o cineasta não fez o filme que ele (o crítico) esperava que fosse feito. Essa reversão de expectativa, ao invés de motivar a possibilidade de um novo olhar sobre o tema, acaba deixando que a má vontade e a decepção do crítico tomem conta de sua análise da obra. É o que se tem percebido em relação ao documentário Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil, de Silvio Tendler, desde sua exibição no Festival do Rio. No Festival de Brasília, felizmente, um júri formado por 15 críticos dos principais veículos especializados do país soube reconhecer o valor do filme, atribuindo-lhe o prêmio da crítica após uma troca de idéias de alto nível (testemunhada pelo Secretário de Cultura do DF).
Por que um documentário sobre Glauber Rocha necessitaria ser fiel à estética de seu personagem? Talvez esperassem um novo Rocha Que Voa, o vigoroso filme de Eryk Rocha, fortemente influenciado pela obra do pai. Glauber – O Filme não é um filme de Glauber, nem de Eryk, e sim um filme de Silvio Tendler. Tal qual Jango e Os Anos JK, documentários de sucesso realizados por Tendler na década de 80, Glauber – O Filme demonstra um incrível poder de comunicação, comprovado pela reação calorosa e emocionada da platéia em Brasília, que lhe concedeu o prêmio do júri popular. O encanto causado pela (re)descoberta do cinema e das idéias de Glauber Rocha foi tamanho que nos dias seguintes, segundo reportagem de um jornal local, os filmes de Glauber sumiram das prateleiras das videolocadoras da cidade.
Os dados acima já bastariam para que o documentário cumprisse sua função primordial: motivar o público em geral a enxergar Glauber distante da visão simplista oferecida por seus detratores nas últimas décadas, de um quase-louco que fazia filmes chatos e alegóricos. No Glauber retratado por Silvio Tendler, a genialidade de sua obra é ressaltada não por explicações acadêmicas de críticos e estudiosos, mas pela persona vibrante, corajosa e lúcida em sua quase loucura, expressa nos depoimentos de amigos e do próprio Glauber, que costuram o documentário.
Cada vez que Arnaldo Jabor, João Ubaldo Ribeiro, Hugo Carvana e Paulo Autran, entre outros, contam como foi conviver e trabalhar com o diretor de Terra em Transe, parece que o espectro de Glauber Rocha baixa neles. Há uma vibração e uma intensidade que Tendler valoriza e inteligentemente intercala com as preciosas imagens do velório e do enterro do cineasta, sublinhadas por uma trilha sonora dramática que exerce uma função semântica semelhante à que Glauber empregava com a música em seus filmes. Essa dialética Glauber vivo-Glauber morto confere ao filme uma ressonância mítica legitimamente glauberiana, sem que se distancie da opção pelo didatismo. Há quem questione a eficácia e a qualidade das vinhetas computadorizadas que costuram o filme, ou ainda as imagens (sem áudio e sem emoção) de um show-tributo realizado no Canecão uma semana depois de sua morte, mas isso é pouco para tirar o mérito de uma obra que dá a Glauber a chance de, finalmente, conquistar a popularidade que ele sempre mereceu.
FILME DE AMOR
Melhor Filme (Júri Oficial), Melhor Fotografia (Walter Carvalho), Melhor Trilha Sonora (Guilherme Vaz)
Por DANIEL SCHENKER WAJNBERG
Em Filme De Amor , Julio Bressane passa da teoria para a prática. Ou será o contrário? Às vezes, o cineasta consegue fazer o mais difícil: falar sobre o desejo – e sobre a sua realização como possível veículo para profundas transformações psíquicas. “O prazer passa mas o desejo volta sempre; é o alimento do amor”, dizem, em dado momento. Apesar de mostrar as personagens tentando realizar aquilo que lêem/enunciam, Julio Bressane faz mais do que afirmar o cinema como concretização do literário. Assina um filme sobre o passar pelas experiências, convidando (ou talvez intimando) o espectador a participar desta “festa suburbana”, a compartilhar como voyeur da intimidade dos que estão na tela.
São três as personagens de Filme De Amor e nem sempre todas participam do mesmo ato, ainda que estejam em conexão durante o tempo inteiro. Ocasionalmente há o olhar de quem “fica de fora” e também o olhar do espectador. Mas esta inclusão da platéia não se dá a partir dos tradicionais mecanismos de identificação com quem está na tela, na medida em que Julio Bressane não facilita no processo de aproximação. As próprias personagens parecem distanciadas umas das outras, uma desconexão que não é suprida nem pela corrente elétrica que percorre os corpos no instante do contato sexual, nem pelos sussurros coloquiais no início da projeção – que logo dão lugar, numa passagem propositadamente não natural, a uma dramaturgia refinada.
Ao contrário do que se tende a pensar, as explanações teóricas injetam vida a Filme De Amor e não estão descoladas do resultado estético. A trilha sonora de Guilherme Vaz, por exemplo, presta importante contribuição na solidificação de um vínculo afetuoso com o universo do antigo, uma das importantes vertentes do filme. E a fotografia de Walter Carvalho não se limita a emoldurar uma dada verborragia mas joga luz sobre corpos abandonados que buscam sua liberação num quarto fechado. Um enclausuramento que contrasta, pelo menos em parte, com a literalidade da idéia de que “o sexo precisa ir em alguma direção – a direção é sair da escuridão, ir em direção ao ar livre” e com os espaços abertos já flagrados pelo cineasta em trabalhos como Miramar . É no plano “prático”, evidenciado no momento em que as ocupações profissionais de cada personagem são localizadas na fabricação de um elo algo forçado entre o popular e o erudito, que o cineasta periga quebrar com uma certa credibilidade, até então construída de modo subjetivo. Esta interrupção da veracidade pode trazer como consequência um afastamento mais concreto entre a obra e o público, de costume resistente diante do contato com material de natureza abstrata.
No entanto, Julio Bressane voa alto no impalpável e sublinha em Filme De Amor a noção de que “é preciso matar a coisa viva para conhecê-la satisfatoriamente” para, quem sabe, atingir um determinado estágio de “transfiguração” no encontro com um outro de si mesmo (“Essa inclinação para ser outra, para sair de mim”). Uma tentativa de entrar em contato com o sublime, de transcender o nível terreno através de um mergulho total na experimentação humana. Tarefa adequada a um artista como Bressane que, no que diz respeito ao cinema, vem simbolizando, ao longo do tempo, um movimento em louvor da experimentação, tão escassa nos filmes contemporâneos, e procurando mostrar através dela que “pelas coisas audíves e visíveis chegamos às coisas inaudíveis e invisíveis”. Cabe pensar, porém, até que ponto o cineasta tem evoluído em suas buscas, se existe alguma acomodação no que diz respeito à metodologia estudiosa que antecede cada realização e ao aprimoramento técnico inegável de seus trabalhos, se permanece fiel diante da proposição de sair de encontro ao desconhecido.
Mesmo que indagações sejam lançadas sobre as suas investigações, Julio Bressane sensibiliza o espectador com Filme De Amor , filme que ganha relevo nas interpretações dos atores – com Fernando Eiras, ator recorrente em produções do cineasta, num trabalho de construção à mostra ainda que dentro do registro discreto no qual foi colocado, Josie Antello tirando partido de sua expressividade facial numa chave de humor debochado e bem brasileiro e Bel Garcia deixada numa posição menos confortável como que aprisionada dentro de uma aparente contenção que desmorona diante da erupção de um tom de voz afetado e capaz de exprimir um certo frenesi. Exceções à parte, os momentos de inesperado e sutil descontrole costumam ser os mais reveladores da verdade humana.
GAROTAS DO ABC – AURÉLIA SCHWARZENEGA
Melhor Ator Coadjuvante (Enio Gonçalves), Melhor Atriz Coadjuvante (Vera Mancini), Prêmio Especial do Júri (pelo argumento)
Por SUSANA SCHILD
Na premiação do 36o Festival do Cinema de Brasília, o júri atribui uma menção especial “ao argumento” de Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach. O diretor subiu ao palco e, com sua franqueza característica, disse que não entendeu. Premiar o argumento, afinal, significaria valorizar uma boa idéia que, segundo os jurados, não contou com uma realização à altura. Ironicamente, a exibição foi recebida calorosamente pela platéia de Brasília, a mesma platéia que também vaia ou fica indiferente quando o filme não agrada.
A rigor, ambos os lados – o júri, que fez ressalvas no resultado, e a platéia, que embarcou e aprovou a viagem proposta pela periferia da grande São Paulo – têm suas razões. As razões do júri provavelmente estão ligadas à própria gênese do projeto, que teria como meta a realização de uma série de filmes para acompanhar trabalho, afetos, família e lazer de algumas operárias de uma fábrica de tecelagem. Aurélia Schwarzenega (a estreante Michele Valle) seria apenas a primeira delas. Por isso, personagens incompletos, como boa parte das colegas de Aurélia, e situações precariamente desenvolvidas podem transmitir um resultado insatisfatório no sentido essencialmente dramático de desenvolvimento da trama e das personagens.
No entanto, nos filmes de Carlos Reichenbach, o todo costuma ser maior do que a soma das partes, um todo em que eventuais imperfeições ou asperezas parecem compensadas por um evidente e vigoroso corpo a corpo do diretor com a obra. Diretamente ligado a Anjos do Arrabalde –filme que acompanha com solidariedade explícita a vida de professoras também na periferia de São Paulo – Garotas do ABC também acompanha o cotidiano de uma jovem tecelã negra, a bela Aurélia, apaixonada pelo astro de Hollywood, hoje governador da Califórnia. Ela é também o eixo da trama e fio condutor entre tensões que ocorrem na fábrica, na família (o patriarca é interpretado por Antonio Pitanga), no lazer e, sobretudo, em torno das ligações perigosas que tem com um namorado envolvido com um neofascista interpretado por Selton Mello.
Garotas do ABC se desenvolve através de fortes contrastes – a delicadeza de algumas operárias, a solidez de alguns núcleos familiares em oposição à virulência e violência de uma turma da pesada, que se concentra em torno de uma mesa de bilhar, onde marginais de vários calibres se confrontam, sem meios tons. E é nesse cenário que Sofia (Vera Mancini) se destaca como exemplo de excluídos sem possibilidades de redenção, atuação merecidamente premiada com um Candango de melhor coadjuvante. Enio Gonçalves, no papel de jornalista, também levou o Candango de coadjuvante. A trama, com vários núcleos de ação, é narrada com grande liberdade, a mesma liberdade que norteou a criação de um cantor fictício, Sam Ray, para substituir Marvin Gaye, o verdadeiro ídolo das operárias, fora do filme por impossibilidade de pagamento dos direitos autorais.
Com eficiente fotografia de Jacob Sarmento Solitrenick (Bellini, a esfinge), Garotas do ABC recusa fórmulas narrativas convencionais para criar um painel social, muitas vezes imperfeito e situações nem sempre compreensíveis, mas de inegável força e despudor com a marca de Carlos Reichenbach.
LOST ZWEIG
Melhor Roteiro (Silvio Back e Nicholas O´Neill), Melhor Atriz (Ruth Rieser), Melhor Direção de Arte (Bárbara Quadros)
Por CARLOS ALBERTO MATTOS
O projeto de Lost Zweig era um campo minado. Filme de época, falado em inglês, com elenco liderado por um ator alemão e uma atriz austríaca, argumento pesado sobre a utopia fracassada de um escritor. Enfim, a receita completa de um fiasco. Mas Sylvio Back contrariou as piores expectativas e driblou todas as armadilhas com um filme que se concentra no essencial.
Com grande economia de signos e a força de diálogos muito bem escritos, Back ajusta o foco sobre os dilemas de Stefan Zweig em sua última semana de vida, tentando uma solução de compromisso com o governo de Vargas e, ao mesmo tempo, com seus fantasmas pessoais. Não há propriamente um desejo de “retratar” o Brasil no ano de 1942. O país prosaico aparece apenas em duas ou três cenas, que, se não estão no nível alegórico do Brasil de Aleluia, Gretchen (o último filme em que Back enfocou as relações germano-brasileiras, em 1977), tampouco podem ser avaliadas pela ótica documental.
O que importa, em Lost Zweig, é o rebatimento desse Brasil festivo e sensual na psique conflagrada do escritor em fuga. Zweig foge tanto da Alemanha nazificada quanto da sua própria identidade. Para dar conta dessa estranha síndrome, Back criou imagens-síntese poderosas, como um jogo de xadrez em que Zweig se desdobra nos dois contendores e as “visitas” espirituais da ex-mulher Friederike, já então convertida numa espécie de voz da consciência de Zweig.
Quem conhece a obra de Sylvio Back sempre espera dele cenas historicamente polêmicas. O novo filme não foge à regra. A partir de indícios e ilações atrevidas, ele mostra, por exemplo, dois encontros pessoais entre Stefan Zweig e Orson Welles, que filmava É Tudo Verdade no carnaval carioca de 1942, além de uma cena de impacto em que o escritor toma conhecimento da verdade a respeito do sucesso de vendas do livro Brasil – O País do Futuro. A História, para este realizador, não é uma donzela a ser preservada, mas uma puta sempre aberta à livre dramatização e às licenças metafóricas.
Nas tramas da rede de Lost Zweig desenham-se as feições do diretor: a defesa de um livre pensamento infenso a alinhamentos ideológicos; a preferência por uma temática ligada às suas origens judaico-européias; a compulsão em mexer com dogmas e pruridos historiográficos.
Fruto de uma longa obstinação, perseguida pelos últimos cinco ou seis anos, Lost Zweig é o feliz encontro de uma tema, uma linguagem e uma produção afinados. Com movimentos compassados e elegantes, dentro de um estilo clássico que se diria “europeu”, Back constrói planos-seqüência arrojados e extrai pathos de cada elemento da cenografia. Este é talvez o seu melhor filme desde Aleluia, Gretchen. Aquele onde a excelente fotografia (Antonio Luiz Mendes), a montagem hábil (Francisco Sérgio Moreira) e a trilha sonora à primeira vista incongruente (Guilherme Vergueiro e Raul de Souza) resultam num todo harmônico e numa sutil complexidade de sentidos superpostos.
Rüdiger Vogler, apesar de algumas pausas equivocadas, encarna o Stefan Zweig denso e atormentado que podíamos mesmo imaginar, enquanto a bela Ruth Rieser o acompanha no diapasão adequado. O elenco brasileiro, expressando-se num inglês bastante digno, também está irretocável. A exceção é de Renato Borghi, que não consegue reverter suas afetações de praxe em benefício da caracterização de Getúlio Vargas.
Entre vários momentos memoráveis, destacam-se as últimas ações de Lotte, em silêncio comovente, antes de juntar-se ao marido no leito de morte. Isso bastaria para dar provas de um realizador em pleno domínio de sua maturidade, conciliando o trágico e o sensual, o inferno e o paraíso, de maneira impecável.
O SIGNO DO CAOS
Melhor Direção (Rogério Sganzerla), Melhor Montagem (Silvio Renoldi e Rogério Sganzerla)
Por DANIEL SCHENKER WAJNBERG
“Antigamente, o mundo era em preto e branco”, explicam para uma menininha que passeia por uma paisagem verdejante lá pelo fim de O Signo Do Caos . Mas é certo que Rogério Sganzerla prefere mesmo o mundo em p&b. Não se trata exatamente de uma oposição à atualização das imagens, ainda que Sganzerla seja esperto o suficiente para não se deslumbrar com cada (suposta?) descoberta dos novos tempos. Parece, isto sim, que o diretor não precisa do apoio da cor – e a parte colorida de O Signo Do Caos é visivelmente menos interessante do que a filmada em preto e branco – justamente porque já sabe “de cor”.
Assim, Rogério Sganzerla não sente necessidade de abrir mão de sua estética e aderir a um diálogo escorado numa negociação com o padrão tecnológico do cinema realizado nos dias de hoje dentro e fora do Brasil. Ao contrário, utiliza a estética como ferramenta de discussão com os seus pares – não só os de geração como todos os colegas de ofício que externam, através dos filmes, posturas relativas ao quadro atual da produção nacional.
“Daqui em diante só sairão deste país filmes saudáveis e milionários para não fazer vergonha no exterior”, afirma, convicto, Dr. Amnésio, o censor-mór interpretado por Otávio Terceiro. É uma tirada certeira contra a ideologia do cinema de exportação, em alguma medida vigente no Brasil e, por extensão, uma cutucada na ânsia dos cineastas em recuperar a comunicação de priscas eras com uma ampla faixa de espectadores através de filmes repletos de concessões que talvez levem a resultados impessoais.
Sganzerla, é claro, está falando do lugar de quem não faz concessões, de quem suporta a solidão de um púbico reduzido para encontrar uma companhia de qualidade. Contudo, em momentos de O Signo Do Caos transparece um tom de autolouvação. O fato do cineasta acertar ao manter sintonia com as questões que norteiam o aqui/agora, sem se deslumbrar com modismos visuais, não responde por completo a uma pergunta: até que ponto a louvável resistência de Sganzerla surge misturada a uma certa autocomplacência?
A própria estética, parte integrante de um diálogo vivo com a contemporaneidade, soa, paradoxalmente, como um porto seguro. Nesse sentido, a taxa de risco, quesito principal de todo trabalho artístico, é suavizada pela repetição segura não de uma assinatura autoral mas sim de uma marca padrão. Uma acomodação que não anula a inquietude de um diretor que defende o cinema-arte que costuma ficar confinado numa esfera subterrânea, o encontro com um genuíno sentido de nacionalidade e a sustentação da memória, facilmente relegada ao esquecimento.
Toda esta defesa é afirmada através da negação, da desconstrução via frases sempre debochadas e/ou sarcásticas, proferidas pelo censor reacionário, como “Vou abrir a barriga do Brasil para ver o que tem dentro”, “Nunca trate um gênio como idiota para que não tenhamos que tratar um idiota como gênio” e “O Brasil é o país do futuro – dizem” (esta última farpa, uma alusão a Stefan Zweig, autor do célebre “Brasil, país do futuro”?).
Apesar do humor, O Signo Do Caos capta a deterioração de um mundo que, ao contrário de boa parte dos vigorosos trabalhos experimentais, parece fazer cada vez menos sentido. “Sou apenas um observador de um sonho que se desfaz. Sou um cinema ambulante”, declaram, num dado momento do filme (ou do “anti-filme”, como definido logo no início da projeção). Palavras que podem ser atribuídas ao próprio Rogério Sganzerla que escolheu o cinema como meio capaz de eternizar imagens reveladoras de ideologias que talvez não existam mais.
(Texto publicado no jornal Tribuna da Imprensa no dia 21/11/2003)
HARMADA
Melhor Ator (Paulo César Pereio)
Por RODRIGO FONSECA
Harmada apresenta seus espectadores a uma espécie de Pasárgada. Nesse reino, ficcionalizado nas idílicas bandas de Paraty, o diretor Maurice Capovilla, revelação tardia da bandeira cinemanovista, convida seu amigo Paulo César Pereio a sentar-se no trono do rei. Afinal, é ele o senhor daquele castelo de blocos atados por uma argamassa de mistério e desejo.
Depois de 27 anos ausente do telão, ensinando, rascunhando sonhos e dirigindo pequenos telefilmes, Capovilla - que costuma ser lembrado apenas por O Jogo da Vida (1976) - achou no livro homônimo do gaúcho João Gilberto Noll uma nova história para contar. Folheando a prosa ainda com um quê beat do autor, ele fincou suas lentes numa figura decadente, relíquia jurássica de um velho estilo de atuar, e fez dela seu anti-herói bufão. Compôs com esse personagem que batizou unicamente de Ator um frenético caleidoscópio de sensações, compartilhando com o público seu entusiasmo pelo papel redentor que a arte ainda pode assumir num mundo despoetizado pela ausência de utopias da pós-modernidade.
Com roteiro cozido no estilo "obra aberta" de Noll, óleo doce que jamais dá nós em suas proposições, Harmada é uma reflexão bonita sobre os obstáculos à realização de uma produção artística em solo brasileiro. Abarca, ao abordar a jornada de loucuras do Ator, a tão falada questão da reforma dos projetos de apoio à Cultura, o assistencialismo aos profissionais do entretenimento, a solidão existencial do palhaço, em seu choro de pierrô. Traduz essas questões através de uma trama pouco preocupada com a verossimilhança, com cadências de tempo, retratos de espaço. Faz bundalelê narrativo-marginal. Uma celebração do dionisíaco entre os protagonistas sociais da tragédia do teatro e do próprio cinema. Mas sempre de mãos dadas com o estilo e a sofisticação do fotógrafo Mário Carneiro, cada vez mais maduro em sua abordagem da diversidade étnica do povo brasileiro.
No circo instaurado em Harmada, Ator vai vivendo (e comovendo) testemunhas oculares de sua viac-crúcis de missionário da fé cênica em episódios de prazer, dor, desilusão romântica e até a prisão não-declarada do matrimônio. O Ator bebe da conturbada biografia de seu intérprete, Peréio, que por sua vez consome viróticamente a energia de sua máscara para chegar a um desempenho que arrebata e faz chorar. Peréio é o Peréio que muitos amam de paixão e alguns odeiam até a morte. É grosso, despojado, sujo, mostra seus genitais e as nádegas em cena sem pudores e encarna o tipo canastra-canalha em cena com uma ferocidade que explode as pretensões de direção pensadas por Capovilla.
Na história, seu personagem mergulha numa odisséia em busca de um sentido, colecionando amores até enxergar numa garotinha, Cris (Patrícia Libardi, bastante aquém do que o papel potencialmente prometia), uma pupila pra chamar de filha. Seu achado, entretanto, converter-se-á numa amarga decepção, só curada na seqüência final, uma das mais lúdicas do recente cinema nacional.
Alusões são jorradas por todos os cantos da cena. A mais gritante é a evocação do bailado guerreiro de Martin Sheen em Apocalypse now no momento em que o Ator e um diretor teatral (Antônio Pedro) confrontam-se nus sob uma cama, antes de desfrutar das delícias de um casal homosseuxal (Joana Medeiros e Malú Galli, ótima). Há um tom operístico felliniano (de O abismo de um sonho) na seqüência em que o protagonista encarna um tipo napoleônico e começa a orquestrar um coro de vozes dissonantes em um asilo defracassados. Nesta passagem, aliás, Capovilla incorpora sua velha verve documental e radicaliza as nódoas da verdade ao superlativar a condição de representantes do amalgamado da população brasileira dos internos daquele lar sombrio.
Ali, o diretor faz documentário como nos tempos em que fundia fantasia carnavalesca e denúncia da miséria em O profeta da fome (1970). O mesmo gesto será repetido no desfecho da narrativo, numa andança pela Lapa. É o reencontro do veterano de hoje com seu passado de fabular. Um cara a cara que não desrespeita o léxico de Noll, nem seu espírito num tom on the road onde o destino do Ator é o coração dos poetas, artistas amadores, amantes metidos a trovadores. Enfim, é um verso livre, que foge de amarras formais numa declaração apaixonada ao projeto de revolucionar politicamente o mundo através da estética.
Leia também o artigo de Rodrigo Fonseca sobre os curtas exibidos em Brasília