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BRASÍLIA 2003: A DECEPÇÃO COM OS CURTAS

02.12.2003
Por Rodrigo Fonseca
BRASÍLIA 2003: A DECEPÇÃO COM OS CURTAS

No pólo extremo do que aconteceu em Gramado este ano, o 36º Festival de Cinema de Brasília trouxe uma seleção de curta-metragem em 35mm decepcionante em termos de linguagem e criatividade. À exceção de um único trabalho de visual impactante e conteúdo maduro, o pernambucano Porcos Corpos, de Sérgio Oliveira, a leva de filmes selecionados pecou por uma estética simplória, calcada em clichês da imagem e roteiros de humor rasteiro. Mesmo os filmes de pegada social não tinham o tom de pigmentação necessária para tingir a tela do Cine Brasília com um quê de novidade e de vigor narrativo.



A cobrança é fruto da qualidade inquestionável que o curta alcança no Brasil a cada novo ano. O formato cada vez ganha mais vitrine na imprensa e entre as platéias, apesar do gargalo mindinho de que dispõe no terreno da exibição. É inegável que está ali um espaço de experiência lingüística. Mas reduzir o curta a laboratório é fazer uma avaliação míope, que não contempla o poder de comunicação que alcançaram os filmes de 1’ a 25’, destruindo as amarras da condição de “produto coadjuvante para longas”.



Do cardápio de curtas selecionados, apenas três outros tinham algo suficientemente interessante a dizer: Cartas da Mãe (SP), de Fernando Kinas e Marina Willer, Estrela pra Ioiô (RJ), de Bruno Safadi, e Transubstancial (PE), de Torquato Joel, vencedor do prêmio da crítica. O grande vencedor na disputa pelos Candangos foi o mineiro Rua da Amargura, de Rafael Conde, um filme sem vitalidade na abordagem da lei de Gerson como solução para a miséria. Sua trama centra-se nos esforços de um sujeito arruinado para convencer a irmã a arrancar os dentes de ouro do pai morto. Mas o passeio de Rafael Conde por este argumento que lida diretamente com o perfil macunaímico do imaginário brasileiro é travado pela interpretação fria dos atores centrais e por uma polifonia dissonante de imagens mal-costuradas na montagem, que corre em ritmo de bicho preguiça. Sua sedução está apenas no jogo com o absurdo (o dente, símbolo de morte na crendice mineira, é signo de renovação da vida), que em momento algum se processa em cena com num frescor beckettiano ou o mínimo de “surrealice”.



Cartas da Mãe já faz um contraponto em seu emocionado tratamento à biografia do cartunista Henfil (1944-1988). O filme concentra-se na correspondência entre o porta-voz da Graúna e sua mãe numa colagem de epístolas que guardam mensagens de política, fé e medo. O documentário só perde o trilho devido a seu trabalho de montagem paquidérmico, que ignora (sem propósito aparente) noções de clímax, prejudicando a fruição do espetáculo.



Também correndo pela estrada do documento, Transubstancial é uma tradução da poética simbólica de Augusto dos Anjos numa fotografia atrelada a um diálogo com as artes plásticas. Cada tomada é uma pequena pintura. Bastante vigoroso em termos de sinestesia, já a beleza do que é visto conjuga-se com a musicalidade operística dos versos do poeta.



Uma Estrela pra Ioiô é uma espécie de alegoria chapliniana que homenageia o primeiro cinema (Méliès, Keaton, Lloyde). Sua maior qualidade, já que a direção de Safadi desperdiça a potencialidade daquilo que propõe num exercício sem brilho de picardia e paródia, é revelar o cineasta Ivan Cardoso como ator. O elenco, encabeçado por Gustavo Falcão e Mariana Ximenes, é bastante dedicado ao empenho de compor uma love story pós-moderninha. Mas Ivan é a grande surpresa, com caras e bocas de bicho mau.



De resto, a seleção de curtas em 35mm correu mansa, sem fôlego a longo prazo, com boas idéias como A História da Eternidade (PE), de Camilo Cavalcante, e Truques, Xaropes e Outros Artigos de Confiança (RJ), de Eduardo Goldenstein, reduzidos a uma realização tímida, sem muito esforço em buscar um roteiro de maior solidez.



Apesar de uma ingrata falta de visibilidade e certo descuido da mostra brasiliense com projeção e programação, a seara do 16mm trouxe este ano pelo menos uma grata surpresa à capital federal, num exercício de celebração do cinema como veículo de contestação. Nada a Declarar, de Gustavo Acioli, é um xarope amargo de niilismo que desceu redondo na goela daqueles que decidiram prestigiar o segmento mais experimental do curta no Brasil. Loquaz, com um palavrório interminável que corre numa cadência de lince, a produção de Acioli retrata uma entrevista. Nada mais. Contudo, a “simplicidade” suposta num esquema de close breve e embate plano-contraplano bissexto, apenas joga um holofote possante na fúria do verbo sem elasticidade disparada pelo personagem central.



O protagonista tem identidade misteriosa. Sabe-se só que ele é famoso. E não tem mais fé no país. Suas expressões são clichês de desencanto, mas estes redesenham-se num tônico de novidade na interpretação de Bruce Gomlevsky, humorista de punhos cheios, apto a dar linearidade ao mais raso rabisco de persona dramática. Seu desempenho é seguro e divertido e segue em comunhão com o roteiro de Acioli, merecidamente contemplado com um Candango. Seu comprimido caiu no 35º Festival de Brasília com o efeito de um purgante, sanitizando um sistema prejudicado por uma certa letargia criativa.





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