Críticas


HELÍ

De: AMAT ESCALANTE
Com: ARMANDO ESPITIA, JUAN EDUARDO PALACIOS, ANDREA VERGARA, LINDA GONZÁLEZ
21.05.2014
Por Gabriel Papaléo
Se a violência liberta, as melhores apostas de um homem seriam as armas da amoralidade?

Amat Escalante ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes ano passado por este seu novo trabalho. Logo no primeiro take - um plano-sequência muito bem realizado - já se percebe a estética handheld que o mexicano usa em Heli, aplicada com eficiência. É um clichê do cinema-verité reciclado desde a Palma de Ouro dos Dardennes por Rosetta - e que ainda pode ser bem utilizado. No entanto, se muitos diretores escolhem a câmera-na-mão pelo realismo, Escalante parece escolhê-la pela maneira com que essa forma registra o choque. O diretor não apenas busca o choque desde o citado primeiro take: ele subverte sua estética para investir em planos estáticos, secos, visando expor a violência.

Ao apresentar os personagens, Escalante demonstra uma certa falta de pulso como narrador. Eleger um censo, síntese da exposição de informações, como maneira de introduzir seus personagens ao espectador é dos recursos mais preguiçosos. No entanto, o roteirista compensa a fragilidade de construção com um poderoso setting: o deserto do México em Heli é frio e surreal, com uma aridez que a fotografia de-satura; um palco adequado para um relato de abusos. Os planos abertos reforçam o isolamento, como se aquela cidade fosse abandonada pelo resto do mundo; e as cenas de treinamento militar são desconfortáveis, bem encaixadas na proposta. E no contraste de qualidade entre pano de fundo e trama, os personagens, simples em suas construções, acabam funcionando devido às situações pelas quais passam.

Esse contraste pode ser percebido através dos temas trabalhados pelo diretor. Sob o ponto de vista temático, o filme vai evoluindo com destreza. Sugere a hereditariedade na tortura da região – e na autoridade, como frisa a policial que perdeu o marido; insinua a naturalidade com que a violência é vista (a matriarca observa a mutilação e nada faz); e ressalta a burocracia dos procedimentos policiais. A boa estrutura narrativa do filme é composta visando atacar o abuso de poder de tais autoridades locais – sejam policiais, criminosos ou militares –, mas logo se volta para o estudo de personagem, com diretrizes morais ilógicas para a narrativa. Heli, o personagem, delira com a chegada de uma camionete militar com imensa metralhadora, sofre com a repressão fascista das instituições locais, mas é só após uma demonstração física de vingança é que obtém paz de espírito para se entregar aos seus prazeres. Seria uma nuance dramática forte se fosse questionada, mas ao registrá-la com atmosfera pacífica, Escalante se perde – e se contradiz – em seu estudo. Não por acaso, a subtrama de abstinência sexual soa deslocada até seu desfecho; é uma contradição que só se evidencia no último take.

Não se condena tanto a vitimização com que Heli entrega seus personagens (o choro de todos os torturados é silencioso) porque se adequam à visão de mundo ali apresentada, mas cobrar do espectador cumplicidade com um protagonista que só se sente realizado quando se torna um homem tão errado quanto aqueles criticados ao longo da trama é um esforço por demais exagerado para passar batido.

As cenas de tortura que chegam a envolver fogo nas partes genitais de um homem acabam vazias em seu contexto. Se a violência liberta, as melhores apostas do eleito homem de bem também seriam um taco de críquete, álcool e um isqueiro?

Ou seriam essas as armas da amoralidade?

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