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EDUARDO COUTINHO – O HOMEM QUE CAIU NA REAL

07.12.2003
Por Carlos Alberto Mattos
EDUARDO COUTINHO – O HOMEM QUE CAIU NA REAL

A 7ª edição do Festival de Cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira, no norte de Portugal, abre no dia 7 de dezembro com a exibição de O Homem do Ano, de José Henrique Fonseca. Além desses, estarão na competição os longas O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, Amarelo Manga, de Cláudio Assis, Rua Seis, sem Número, de João Batista de Andrade, e os portugueses Durante o Fim, de João Trabulo, e Antes que o Tempo Mude, de João Luís Fonseca.



Os cineastas José Eduardo Belmonte, de Brasília, e o gaúcho Allan Sieber mostram seus curtas na sessão denominada Sangue Novo. Mas o grande homenageado do festival será o documentarista Eduardo Coutinho, com a exibição de alguns de seus filmes mais importantes, como Cabra Marcado para Morrer e Edifício Master. Durante o evento, será lançado o livro Eduardo Coutinho – O Homem que Caiu na Real, de Carlos Alberto Mattos, da equipe de Críticos.com.br. O volume passa em revista toda a obra do realizador, com resenhas críticas e contextualização de cada filme (inclusive os de ficção, do início da carreira), uma grande entrevista com Coutinho, além de biofilmografia exaustiva.



Criticos.com.br publica abaixo, em primeira mão, a introdução do livro.





CINEMA DE PESSOA A PESSOA



Por Carlos Alberto Mattos



O cinema documental no Brasil só começou a construir uma tradição a partir de fins dos anos 1950, com o advento do som direto e a descoberta dos temas populares, especialmente da região Nordeste. Até então, o filme de não-ficção restringia-se ao simples registro de atualidades, produtos institucionais ou cívicos, e algumas obras de cunho etnográfico. A grande multiplicidade de estilos e abordagens só viria com o Cinema Novo, já na década de 1960.



Nessa época, o jovem Eduardo Coutinho mal iniciava sua carreira no cinema, ainda alheio a qualquer preferência entre ficção e documentário. Como que arrastado por uma força centrípeta, passara de cinéfilo adolescente a estudante do IDHEC de Paris. Viria a participar marginalmente do Cinema Novo, primeiro através de projetos didáticos ligados à esquerda estudantil (Cinco Vezes Favela, UNE Volante e a primeira etapa de Cabra Marcado para Morrer); depois em filmes que procuravam aliar apelo comercial com alguma visão crítica do processo social (O Pacto, O Homem que Comprou o Mundo, Faustão).



A curiosa trajetória de Coutinho muda radicalmente a partir de meados dos anos 1970, quando, desiludido com o cinema e voltado para o jornalismo, ele consegue conciliar os dois ofícios nos programas Globo Repórter. A essa altura, o documentário brasileiro tomava novas injeções de ânimo, seja através de iniciativas da televisão, como o próprio Globo Repórter, seja através da “caravana” que o produtor Thomaz Farkas enviou para o Rio de Janeiro e o Nordeste, ajudando a formar toda uma nova geração de documentaristas.



Este é o momento em que Eduardo Coutinho diz ter “caído na real” – expressão que se refere tanto ao seu percurso pessoal, como ao direcionamento de sua carreira. A opção pelo documentário, contudo, não dispensava o aprendizado da ficção. Não que ele se dispusesse a mesclar registros, mas porque compreendia que a realidade é uma quimera e, em última instância, não tem valor cinematográfico. Desde os tempos de Globo Repórter, Coutinho entendeu que o documentário de entrevistas é uma construção de que participam, em igual medida, o entrevistador e o entrevistado.



A partir da notável revelação que foi Cabra Marcado para Morrer – coleta de memórias e reflexões sobre o projeto de 1964, feita 20 anos depois e em contexto histórico radicalmente diverso –, a carreira do cineasta assumiria o caráter exemplar de um método que se depura e radicaliza a cada filme.



Para começo de conversa, Coutinho elegeu o encontro pessoal como meio de aproximação ao universo do cotidiano e da cultura popular. Com isso negou a propalada exaustão da entrevista, renovando-a como veículo de discursos polissêmicos, onde confissão, desabafo, fantasias e mentiras sinceras muitas vezes se misturam de maneira indissociável. Criou o mito de que ninguém fala como para ele. Ou de que logra extrair dos seus interlocutores aquilo que outros não conseguem. Segundo o mito, isto seria fruto de uma estranha magia, uma vez que Coutinho não se distingue por uma simpatia especial perante seus entrevistados, não corteja nem se faz de amigo.



Uma análise mais detida de seus procedimentos vai mostrar que as veleidades do entrevistador não explicam tudo. O fato é que, através de trabalhos em vídeo, ao longo dos anos 1980 e 1990, Coutinho apurou o senso na escolha de suas personagens e no recorte de seus contextos. As chamadas “prisões”, espaciais e/ou temporais, ajudaram-no a aprofundar o olhar sobre comunidades, favelas e agrupamentos humanos específicos, numa prática que pode ter origem no documentário Seis Dias de Ouricuri, realizado para o Globo Repórter. O realizador assume que é preciso escavar para aprofundar. Quanto menor o espaço de ação, mais funda é a investigação. Essas constrições serviram, ainda, para dar um sentido de urgência ao seu trabalho. E, mais que isso, fornecer a possibilidade de fracasso, que é o combustível mais poderoso para a personalidade naturalmente pessimista do diretor.



O itinerário do Coutinho documentarista ruma claramente para longe de toda generalização. Mesmo ao tratar de grandes temas gerais ou conceituais, como a herança da cultura afro-brasileira em O Fio da Memória, ele privilegia instâncias pessoais de narração e fabulação. Trata-se de trocar o abstrato pelo concreto, o didático pelo vivencial, a atualidade pela atemporalidade antropológica. Para o realizador, o macro está contido no micro e só através deste pode ser atingido.



O grande desafio de Santo Forte --– abordar o misticismo numa comunidade favelada usando exclusivamente relatos verbais – abriria uma espécie de terceira vida dentro da carreira de Coutinho, com impacto semelhante ao de Cabra Marcado para Morrer. Tinha-se ali, mais que um filme bem-sucedido, um método e uma ética cuidadosamente depurados. A contínua decantação promovida filme após filme, que levaria ao excepcional concentrado humano de Edifício Master, é fruto de autocrítica e recusa do supérfluo.



Já nos anos 1970, o documentário Teodorico, o Imperador do Sertão obtivera uma vitória rara no formato do Globo Repórter, que foi a supressão da narração onisciente a cargo de um locutor da casa. Notam-se, na obra futura de Coutinho, a progressiva retirada do off e a concentração numa dramaturgia da fala. A voz nos seus filmes mais recentes tem sempre corpo e alma presentes – o que ele chama de “fala incorporada”. Outras supressões se sucederam: montagens paralelas, imagens de cobertura, música não-incidental, material de arquivo.



Há quem veja nesse regime uma recusa do instrumental cinematográfico e um purismo inglório. A crítica faria todo sentido caso Coutinho não oferecesse tanto em troca daquilo que retira. Ele se insurge contra o senso comum de que o cinema é fenômeno condicionado somente pela visualidade e no qual a palavra desfrutaria de estatuto inferior. À medida que resseca mais e mais o seu cardápio de recursos, mais ricas vão ficando as falas e mais valorizado vai ficando o carisma dos falantes. A rejeição a materiais de arquivo é parte do seu respeito pelo momento da conversa. Para que alguma fotografia ou imagem pré-filmada seja exibida, ela precisa estar presente no instante da entrevista – ou seja, incorporada ao presente absoluto de que o cineasta não mais abre mão. Em seu novo filme ainda em montagem, que tem o título provisório de Peões, imagens e fotos das greves metalúrgicas de 1979/1980 só aparecem como material dramático diretamente inserido na realidade de 2002/2003.



O regime austero de Coutinho justifica-se por uma proposição fundamental: seus filmes, especialmente os autorais da fase pós-Cabra, não são sobre fatos, nem versam sobre um passado já sepultado. Não são sequer filmes sobre pessoas ou grupos. São filmes sobre os encontros do documentarista com determinadas individualidades. Encontros em total proximidade física, ainda que a distância social continue evidente e não dissimulada. Não existe qualquer atitude por parte do realizador no sentido de buscar uma igualdade temporária que facilite o diálogo. A Coutinho interessa o Outro, o diferente social e culturalmente. Por isso é difícil imaginar que ele ainda venha a se interessar pela elite da qual, incomodamente, participa. Os condôminos de classe média baixa enfocados em Edifício Master parecem constituir o seu limite em matéria de aproximação da vizinhança social.



Parte integrante desse cinema de pessoa a pessoa é a exposição do processo de documentação dentro do próprio filme. As chegadas da equipe, sempre documentadas por uma câmera de apoio a duplicar o eixo da câmera principal, tornaram-se uma marca desde Cabra Marcado para Morrer. Da mesma forma, a imagem do diretor, face a face com seus interlocutores e quase completamente desligado do aparato técnico ao seu redor, aparece intermitentemente – não para torná-lo catalisador do espetáculo da informação (como ocorre com Michael Moore e Nick Broomfield), mas apenas o suficiente para sublinhar a condição de encontro e o caráter de conversa. A montagem assimila também “ruídos” de diálogo, pagamento de cachês, retalhos de conversas circunstanciais à margem da entrevista etc, elementos habitualmente escamoteados na edição de documentários tradicionais.



Há, porém, limites muito bem definidos para essa exposição, localizados no campo da ética. A vocação humanista de Coutinho, aliada à longa experiência de contato com gente desfavorecida, levou-o a um rigor cada vez maior no trato com as palavras alheias. Sempre norteado pela preocupação de não alimentar estereótipos, não fazer generalizações, nem causar prejuízos de imagem a suas “personagens”, ele muitas vezes sacrifica cenas dramaticamente fortes ou potencialmente divertidas. Seu limite é a integridade moral e a dignidade social do Outro.



Essa ética manifesta-se, igualmente, na recusa a tratar a entrevista apenas como uma peça na engrenagem de uma história ou de uma tese preconcebida. Sobretudo em seus filmes mais recentes, Coutinho não retalha depoimentos segundo a conveniência de uma exposição temática ou visando a produção de contrastes e interações artificiais. Cada pessoa permanece em cena até se constituir como sujeito de um discurso próprio, portador de uma história humana consistente, por mínima que seja. Não raro, é no tempo que ocupa diante da câmera, sem interrupções, que o entrevistado consegue transmitir uma complexa vida interior que pulsa através da fala.



Ao abdicar de adornos audiovisuais e reduzir sua estética a uma ética, Eduardo Coutinho pretende refrear a vaidade da autoria, dissolvendo-a no ato de simplesmente ouvir os outros. Nisso, contudo, ele vive uma curiosa contradição. Pois seus filmes, na medida em que se reduzem ao essencial e apostam na fala popular pura, cada vez mais se tornam únicos, indissociáveis do seu criador. No Brasil já é fácil discernir um filme de Coutinho entre as muitas dezenas de documentários interativos surgidos a cada ano, em diversas metragens e formatos. A admiração pelo seu trabalho calou fundo em muitos jovens documentaristas, alguns dos quais já passaram por suas equipes. Daí a existência de um sem-número de seguidores recém-convertidos às virtudes da entrevista.



Nem todos obtêm resultados expressivos como Evaldo Mocarzel (À Margem da Imagem), Thereza Jessouroun (Samba, Os Arturos), Consuelo Lins (Chapéu Mangueira e Babilônia: Histórias do Morro) ou Beth Formaggini (Nobreza Popular). Muitos apenas se esforçam por captar a “verdade” do povo em sucessões de depoimentos espontâneos e fazem questão de documentar o trabalho da própria equipe de filmagem, como se esta fosse uma fórmula infalível. Estes desconsideram o fato de que o método de Coutinho está além do culto à espontaneidade. É antes o fruto de uma engenharia de seleção, recorte e depuração que tem na filmagem o seu momento de epifania.



Coutinho tornou-se o mais importante e influente documentarista brasileiro da atualidade não somente por seu modo judicioso de proceder, mas também pelo corpo de obra que erigiu ao longo da carreira. Nela os temas evoluem como galhos de uma árvore construtivista, comunicando-se de filme a filme e passando de secundários a principais. A religiosidade popular foi objeto de sua atenção crescente em Santa Marta: Duas Semanas no Morro, O Fio da Memória e Santo Forte. A vida na favela esteve presente em Santa Marta, Santo Forte e Babilônia 2000. As rivalidades familiares no Nordeste brasileiro estiveram em foco no ficcional Faustão e no documentário Exu, uma Tragédia Sertaneja. O poder no campo foi tema de Cabra Marcado para Morrer e Teodorico, o Imperador do Sertão. A subsistência retirada do lixo foi tangenciada em A Lei e a Vida antes de passar a assunto central de Boca de Lixo.



Subjacentes a esses grandes temas, destacam-se alguns subtemas recorrentes. Comida e morte, por exemplo, incidem com freqüência incomum nas situações e histórias recolhidas por Coutinho. As relações familiares são um terreno fértil para sua dramaturgia do real, tendo como matriz a coleta de cacos da família de Elizabete Teixeira no Cabra. Acrescente-se, ainda, a força afirmativa da mulher, outro ingrediente constante em obras tão distintas como Cabra, Mulheres no Front, O Fio da Memória, Santo Forte e Babilônia 2000.



A obra-prima Edifício Master chegou às telas no ano de 2002, num momento em que o documentário despontava como uma das vedetes da retomada do cinema brasileiro (como é chamado o reaquecimento da atividade após quatro anos de congelamento à época do governo Collor). Tão diversificados quanto os filmes de ficção, os documentários então conquistavam público, prestígio, espaços de exibição no cinema e na TV, mecanismos de apoio e patrocínio, repercussão em festivais etc. O discreto Eduardo Coutinho é parte importante desse renascimento e sua obra se oferece como referência de qualidade e compromisso.





Leia a entrevista concedida por Eduardo Coutinho ao Críticos.com.br em novembro de 2002

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