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A FAXINA DIGITAL

02.07.2014
Por Carlos Alberto Mattos
Estará o digital cumprindo a vocação fantasmática e imaterial do cinema?

A substituição do celuloide pelos arquivos digitais não trouxe apenas uma mudança de suporte, mas também uma alteração em toda a ontologia do cinema.

A começar pelo sentido de duração, antes determinado pela sucessão de fotogramas. Mesmo nas fitas de vídeo e até nos DVDs, era possível estabelecer uma relação entre a duração do filme e o estágio físico em que o suporte era percorrido linearmente. Olhar uma fita no projetor ou num cassete de vídeo, ou a posição do leitor ótico num disco digital nos permitia saber, materialmente, em que ponto do filme nos encontrávamos. Hoje, com os arquivos digitais, essa verificação só é possível mediante uma indicação não física, mediada por softwares. O paralelo entre matéria e filme se perdeu.

As fitas e discos nos garantiam uma impressão de materialidade, que de certa maneira compensava a operação puramente virtual que é própria de todo cinema. Ainda que fosse de uma forma precária, esses objetos nos asseguravam a presença do filme. Era possível “pegá-lo” com a mão, transportá-lo com a certeza de quem levava uma fruta do mercado para a geladeira. Num pendrive ou numa transmissão online, somos obrigados a acreditar, no escuro, que o filme está ali, à espera de que um hardware confiável faça a conversão milagrosa do nada em filme.

A fita de celuloide possibilitava “ver” o filme, ou seu mapa genético, através dos fotogramas, sem necessariamente movimentá-los numa máquina de visionamento. Se isso ficou impossível no vídeo e nos discos, restava ali ainda o substrato de uma presença adivinhável: invisível mas palpável. Os arquivos digitais deletaram completamente esse tipo de percepção, deixando-nos à mercê da fé informática como única garantia. O cinema abre mão de sua consistência material e entra num buraco negro, um túnel desconhecido ao fim do qual ressurgirá somente na tela como algo quase sobrenatural.

Desapareceram, com as fitas, também o facho de luz sobre nossas cabeças, o ruído do projetor, os riscos que prenunciavam a troca de rolos, o brado dos indignados com a falta de foco, o suor dos transportadores de latas, a fome dos arquivistas de cinemateca. O digital fez uma faxina na mitologia da exibição cinematográfica. Talvez esteja apenas cumprindo a vocação fantasmática do cinema desde sempre. A arte que mais mobiliza os recursos materiais do mundo se apresenta, ao fim e ao cabo, como um jogo de luzes e sombras, tão imaterial quanto as aparições de Fátima.

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