Críticas


O GRANDE HOTEL BUDAPESTE

De: WES ANDERSON
Com: RALPH FIENNES, TONI REVOLORI, SAOIRSE RONAN, F. MURRAY ABRAHAM.
03.07.2014
Por Gabriel Papaléo
A mais bonita e melancólica reflexão do cineasta.

Em Os Excêntricos Tenenbaums, o patriarca Royal buscava nos arquétipos problemáticos da família os sentimentos perdidos ao longo dos anos; o menino Sam agia como um adulto para tentar ter seu amor à Suzy levado a sério em Moonrise Kingdom; o Fantástico Senhor Raposo entrava em conflito com a humanidade para estabelecer uma ideia de família essencialmente animal. O cinema de Wes Anderson pode ser confundido por muitos como ensaios caricaturais dispostos com a vocação ao tableau que o diretor evoca com frequência, mas é justamente ao atribuir dilemas tocantes aos personagens em meio à artificialidade que o diretor criou uma bem-sucedida filmografia.

O Grande Hotel Budapeste, seu nono filme, retrabalha esse conflito em chave mais ágil, na trama mais costurada de Anderson. Deliberada homenagem às comédias de Ernest Lubitsch, o filme já começa com uma abordagem quase metalinguística na maneira como trata a literatura e o próprio cinema. A narrativa desenrola-se através dos relatos do escritor vivido por Jude Law, cujo livro é lido por uma menina (nos anos 80) que surge no prólogo e no epílogo como espectador on screen.

O diretor defende o uso de miniaturas ao invés de elaborados efeitos em prol do charme, e essa opção se encaixa especialmente na proposta do filme: em momento algum ao longo dos 99 minutos de projeção alguém parece se dar conta do fabulesco absurdo das situações, e Anderson jamais tenta mascarar a homenagem ao over. O caricato só vira questão quando as linhas temporais desenvolvem relatos de memória, o que rende forte nostalgia para o filme.

As matte paints (pinturas que substituem cenários) em abundância são outro sinal da artificialidade do conto de fadas ambientado em uma Europa entre guerras. É como se Anderson criasse um mundo de sonho, sem a ilusão da fantasia na qual tudo dá certo. O diretor encaixa uma trama cheia de viradas e intrigas que procura coincidências a cada novo detalhe, emulando desde comédias screwball até filmes de assaltos e de assassinatos em série, mas que conferem lastro emocional através de figuras como os personagens Moustafa e Agatha. O ambiente é recheado de referências estilizadas, cinematográficas e da arte, característica do cineasta, mas também habitado por seres ternos e tridimensionais. Logo a partir da apresentação do flashback, esses dois níveis, o emocional e o operático, se impõem. É quando o filme toma caminhos próprios para se sustentar sozinho e ir além da mera simulação de clássicos.

Misturar o kitsch à profundidade de desenvolvimento narrativo não é novidade na filmografia do americano. Tenenbaums exibia uma galeria de pessoas bizarras em meio às cores fortes da direção de arte, da mesma forma que Moonrise Kingdom parecia uma fábula por ser extensão da visão de mundo das crianças. A novidade de O Grande Hotel Budapeste é que Anderson impõe uma dicotomia a esses elementos. Os momentos de maior catarse no filme, naturalmente, são aqueles nos quais há um choque potente entre a fofura quase infantil do visual e os temas densos que atravessam emocionalmente os personagens. Os arroubos de violência (dedos mutilados, decapitação, o perigo imposto por um capanga) devem-se mais a esse conflito de abordagens do que a alguma eventual tensão que o filme provoque.

O ambiente funciona como extensão das dores e alegrias dos habitantes desses universos criados pelo diretor. Aqui, a estilização vai além, já que simboliza tanto a reprodução de gêneros cinematográficos e a visão dos personagens daquela época, como confere a melancolia dos que estão no presente, mas lembrando o passado. No campo desse olhar saudosista, o diretor e o fotógrafo Robert Yeoman concebem soluções visuais inspiradas. A mudança da janela de projeção através das épocas é uma sacada genial, além de poder dar a Anderson o privilégio de atingir as multiplexes com um filme quase todo rodado em 1.33:1. A iluminação, por vezes propositalmente artificial, funciona para essa paixão em expor as trucagens do cinema. O chiaroschuro da sala de leilões evoca nobreza aos presentes sem apresentar textualmente nenhum dos presentes ali. Além das opções técnicas e de iluminação, as cidades de interior europeias, diferentes do luxo dos hotéis, conferem uma diferença de paisagens que evoca os filmes de espionagem de então.

E, charmoso como deveria ser, o hotel que dá título ao filme é de exuberância fabulosa, com cores simpáticas que simbolizam o bem-estar dos hóspedes naquele ambiente visto com nostalgia por todos. A paleta de cores inspirada do hotel, inclusive, estende-se para a maioria dos ambientes nos quais as pessoas se sentem acolhidas (o 'Mendls', o altar na montanha, os outros hotéis). É a obsessão por qualidade visual de sempre do autor que ganha um sentido mais interessante na análise da carpintaria dramática.

A sensação de solidão atinge muitos personagens, mas principalmente Monsieur Gustave (Ralph Fiennes) e Moustafa (que vemos jovem e idoso). O acolhimento dos funcionários do hotel em contraste com o jantar humilde e solitário de Gustave é um dos primeiros sinais que Anderson revela sobre a condição que atinge os protagonistas de seu universo. Na prisão, o concierge abre um sorriso ao ouvir que “você é um de nós”. Da mesma forma, Moustafa revela sua origem com pesar nas palavras, como se precisasse entrar no cargo do Grande Hotel para pertencer novamente a uma família. Agatha e Moustafa, aliás, tem o envolvimento amoroso muito baseado nessa sensação de se sentir completo com o outro (o que rende, claro, uma declaração de amor juvenil à Moonrise Kingdom). Falando das outras linhas temporais, talvez seja isso que Anderson pretende falar com a tendência à literatura do filme: a menina, como todos nós, busca pertencer a algo, mesmo que seja a um livro.

Saoirse Ronan (Agatha), uma das melhores atrizes de sua geração, e o ótimo Toni Revolori (Moustafa jovem) incorporam com habilidade o humor leve exigido pelo texto - e ainda transmitem com delicadeza ímpar o que não precisa ser dito. A intensidade na qual Ralph Fiennes recita seus deliciosos diálogos é traduzida pelo ator com a mesma disposição da sutil necessidade de pertencimento que escapa na expressão forte de Gustave – e Revolori e o genial F. Murray Abraham conferem o mesmo sentimento a Moustafa, jovem ou idoso.

A maneira com a qual Anderson olha para o passado cinematográfico, com nostalgia, é a mesma através da qual Moustafa enxerga sua história. O passado é visto como uma farsa, mas uma farsa sincera na qual poderia haver felicidade e onde o futuro não exalava solidão. É talvez a mais bonita e melancólica reflexão de um diretor já tão cheio delas. O drama é sentido com a ternura de sempre, mas com uma contemplação posterior ainda mais densa. Sob a pele de estonteante beleza visual e tipos falsamente arquétipos, O Grande Hotel Budapeste é um filme emocionalmente desafiador. Cobra uma atenção aos dilemas de cada um e fica com o espectador após o fim de sessão, acolhendo-o no que acabara de ser contado. E esse é um dos maiores laços emocionais que se pode ter entre público e personagens; quando a menina termina de ler o livro, ela não o fecha.

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Outros comentários
    1626
  • Clarissa
    03.07.2014 às 20:04

    Ótimo texto!!! :D