Críticas


DOGVILLE

De: LARS VON TRIER
Com: NICOLE KIDMAN, PAUL BETTANY, LAUREN BACALL, JAMES CAAN, BEN GAZZARA, JEREMY DAVIES
27.01.2004
Por Daniel Schenker
A VOZ DA CONSCIÊNCIA

As primeiras imagens de Dogville , captadas por uma câmera trêmula e “imprecisa” que pode gerar uma sensação de claustrofobia no espectador, remetem à desestabilização apresentada por Lars Von Trier em filmes como Os Idiotas e Ondas Do Destino . No entanto, este desconforto é minimizado no decorrer da projeção. Ainda que permaneça certa estranheza pelo fato de toda a ação se passar em cima de um palco, o cineasta confirma o seu momento de aquietação.



Assim como Dançando No Escuro , Dogville não representa uma ameaça à segurança do público. Em ambos os trabalhos (principalmente, no filme protagonizado por Bjork), Trier abre margem para leituras ligadas ao contexto externo, menos custosas do que as direcionadas para as mazelas humanas. Primeira parte de uma trilogia intitulada América , Dogville segue o recurso de falar da atualidade (“O país todo se sairia melhor se houvesse mais aceitação”, afirmam) através de um distanciamento temporal. Se por um lado seria injusto dizer que a produção se esgota em sua natureza política, por outro o objetivo final não parece estar na complexidade dos personagens, como aconteceu em Os Idiotas , que, ao mostrar as dificuldades enfrentadas pelos componentes de uma comunidade para manter um posicionamento de agressiva alienação diante do mundo, não privilegiava a oposição de poucos frente ao esquema social e sim a agonia destes ao perceberem que dificilmente conseguiriam sustentar uma proposta tão radical, por mais fervorosa que fosse a crença envolvida, para além da fronteira da lógica interna do grupo.



Ao procurar um novo equilíbrio, valorizando mais os feitos exteriores do que as repercussões internas causadas por eles, Lars Von Trier perdeu a perfeita noção da forma como consequência do conteúdo. Mesmo que repleto de qualidades, Dogville não traz justificadas todas as opções de seu realizador. Ao ambientar o filme em cima de um palco, Trier não assume uma teatralidade e nem busca um contraste entre a aridez cênica e os recursos cinematográficos. Sua intenção em não fornecer a geografia convencional de uma pequena e esquecida cidade parece se resumir à preocupação de estabelecer um código de convenções com o espectador, sempre necessário quando se está diante de um espetáculo teatral, e de quebrar com a realidade fornecida pelo cinema. É como se trocasse a artificialidade do real por uma artificialidade assumida.



Há uma ponte evidente com as limitações libertadoras pregadas no manifesto Dogma 95, que aproximavam o cinema do teatro centrando o acontecimento artístico na figura do ator. Mas sem a mesma precisão. O cineasta evoca o cinema nas tomadas panorâmicas e na presença de carros sobre o palco (ainda que eles já tenham aparecido em algumas montagens) e o teatro na cenografia, no close nos rostos dos atores e em ocasionais marcações assumidas (mas longe da aridez de A Eternidade E Um Dia , de Theo Angelopoulos); contudo, suas motivações deixam a impressão de derivarem de escolhas de ordem estética e a gramática de cada manifestação não é aproveitada nas suas possibilidades, a exemplo da iluminação que, a não ser em poucas passagens (como a entrada da Grace interpretada por Nicole Kidman) nas quais atinge alguma significação maior, fica restrita à função de demarcar gradações diferentes entre a rua e o interior das habitações e de sinalizar dia e noite.



A rigor, Lars Von Trier só revela uma inquietação “preenchida” no modo como sua câmera se aproxima dos personagens/atores, como que procurando anunciar um descompasso entre rostos e corações e, consequentemente, a pouca admiração do diretor em relação ao ser humano. “Esta cidade apodreceu – e de dentro para fora”, anunciam, num determinado momento.



Ao se deparar com figuras mergulhadas na penumbra, Grace fica perplexa ao abrir uma cortina. Se seus esforços em trazer os moradores de Dogville à luz da verdade se frustram, isto se dá em virtude de todos, inclusive ela, serem ignorantes em relação a si mesmos e estarem comprometidos com o mecanismo da loucura, preocupados tão-somente em suas defesas pessoais e, por conseguinte, “afastados, cada vez mais, da própria consciência” – a narração, a cargo de John Hurt, assume a perspectiva da voz de consciências defendidas.



Não por acaso, a consciência é trabalhada durante boa parte da projeção de Dogville como um estado de despertar superficial, como o de Grace ao acordar na carroça ainda atada a um otimismo fanático resultante de uma condescendência pré-fabricada e de uma necessidade de ser salva. Lars Von Trier intenta se utilizar desta esfera propositadamente pouco profunda ao invés de se deixar levar por ela mas é fato que, desde Dançando No Escuro , passou a se valer da mais gritante manipulação emocional como arma intelectual na sensibilização de espectadores protegidos por hábito dos golpes melodramáticos da indústria cinematográfica. O desejo de manipular ferramentas na tentativa de adquirir poder sobre o espectador fez com que Trier perdesse a mestria em, como diz Tom Edison Jr. (Paul Bettany), “ver através”, trocando a transcendência pela encenação dela. Interessante notar, as palavras foram colocadas na boca de um personagem com dificuldade de assumir seus atos, algo que talvez expresse um pouco da indefinição de Dogville .



Sem investir numa abordagem psicanalítica, o diretor, ao contrário, escolhe um desfecho que, de certo modo, leva o espectador a se sentir vingado por se ver diante de uma protagonista capaz de ostentar seu poder diante do mundo ao invés de se conformar com a idéia de que deve tratar de mudar a si mesma e não esperar que tudo ao redor se modifique em virtude de sua vontade ou de seu justo rancor. Lars Von Trier, porém, incorre num certo moralismo ao tornar criminosa a raiva de sua personagem e, paradoxalmente, estimula a perversão da platéia ao forçar uma adesão entre o público e Grace, a nova heroína da vitrine de seu cinema. Mas, manobras à parte, o diretor deixa espaço para o público descascar a docilidade perversa de Dogville e, novamente como Grace, “ver por um outro ângulo”.



Esta possibilidade não é suplantada por uma narração – em que pese o seu teor descritivo e a sua ambição hipnótica (já buscada em Europa , via a entonação de Max Von Sydow) – que contribui para a criação de um tom fabular cada vez mais contrastante à medida que o filme avança. O trabalho com os atores também parece ter sido direcionado nesse sentido e a voz melodiosa e monocórdia de Nicole Kidman só contrasta com o texto da parte final. Dona de uma personagem previsível, calcada na camuflagem de um alto grau de agressividade por trás de uma civilidade apenas aparente, Patricia Clarkson é o grande destaque de um elenco estelar que conta com as presenças de, entre outros, Lauren Bacall, Harriet Andersson, Ben Gazarra, Chloe Sevigny e Paul Bettany (bem, em especial na construção dos constantes atos falhos de Tom Edison Jr.).



# DOGVILLE (Dogville)

Dinamarca/Suécia/França/Noruega/Holanda/Finlândia/Alemanha/Itália/Japão/Estados Unidos/Inglaterra, 2003

Direção e roteiro: LARS VON TRIER

Produção: VIBEKE WINDELOV

Fotografia: ANTHONY DOD MANTLE

Elenco: NICOLE KIDMAN, PAUL BETTANY, PATRICIA CLARKSON, LAUREN BACALL, HARRIET ANDERSON, BEN GAZARRA

Duração: 177 minutos

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