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SEIS ANDARES DE FELLINI

16.02.2004
Por João Mattos
SEIS ANDARES DE FELLINI

Existe uma classe ranheta de cinéfilos (sejam eles espectadores comuns, críticos ou gente da indústria) que sacralizam a assistência de um simples filme ao ponto de transformar o mister comum a todos espectadores, como a escolha do lugar onde sentar, o comportamento durante a exibição, etc, numa atividade cheia de caracteres peculiares, por vezes obsessivos. Eu sou um desses cinéfilos. Existem pessoas que mesmo mais do que cientes da praticidade e da vantagem em possuir um celular (bom, há quem diga que até pode evitar seqüestros durante abordagem no trânsito), relutam em fazê-lo por ficarem enervadas com o mau uso quase generalizado desse aparelho, e com o incessante tocar do troço em filmes, peças teatrais, etc, etc. Eu sou uma dessas pessoas.



Então, que diabos fui fazer numa sessão de Casanova de Fellini no Vivo Open Air, o evento no Jóquei Clube do Rio de Janeiro, cuja atração principal é a exibição de filmes numa mega telão ao ar livre, reputado como o maior do mundo? Fui, depois de ser credenciado, combater empiricamente a minha dupla ranhetice, sob os maus agouros de alguns amigos e colegas (“ninguém presta atenção nos filmes, sejam de Felini ou com a Julia Roberts”, “vai ter barulho por todos os lados até dizer chega”, “impossível uma tela desse tamanho ter uma projeção tecnicamente correta”, “o pessoal vai só para badalar”), e, confesso, mortificado por alguns maus presságios pessoais. Fui, acima de tudo, conferir uma das obras de um gênio, obra que nunca tivera oportunidade de ver. O saldo geral, para lá de positivo, foi notável por demonstrar o quão erradas estavam as suposições de meus camaradas e as minhas próprias, e como é bom confrontá-las de vez em quando.



De cara, deve ser dito, que mesmo acreditando que mega-eventos como este (ainda acompanhados de atividades paralelas como shows depois dos filmes), não são o palco mais adequados a filmes de arte sejam eles de Bergman, Hou Hsiao-hsien ou Manoel de Oliveira, não houve debandada geral da sessão felliniana ou vaias. Claro que parte da audiência (cerca de pouco mais de 90% dos lugares estavam ocupados) preferia assistir um filme mais próximo do senso comum, mas o filme foi bem recebido e rolaram algumas boas gargalhadas em cenas cheias do humor bizarro único do cineasta italiano. Alto astral e paz de espírito, aliás, sobravam entre os freqüentadores do Vivo Open, mostrando como este tipo de badalações são boas para aqueles que conseguem frequentá-la, pois entre outras coisas, antecipam tendências e discussões culturais (por exemplo, Garotas de ABC, de Carlos Reichenbach, um dos maiores cineastas brasileiros em atividade, teria sua primeira exibição carioca ao longo do evento).



Mas o melhor de tudo foi que durante os 166 minutos de projeção, não tocaram mais de três ou quatro celulares, cujo som era quase inaudível face à amplitude do local. Para quem já esteve em sessão pública de cinema alternativo de alta qualidade, só que pequeno (Espaço Unibanco 3 do Rio de Janeiro), e na qual sete vezes celulares tocaram, acredite, tudo transcorreu muito bem. Os puristas, ou neo-puristas (como sou às vezes), podem argumentar que ainda assim ver filmes não é a maneira 100% acertada, porém se nunca experimentarem algo parecido, estarão se privando de um tipo de sessão muito interessante. A tela do Vivo Open Air (22,8m X 12,1m), tem algo de quase pornográfico, insano. Não seria uma certa overdose audiovisual, pensei num primeiro momento (dias antes de comparecer a sessão), um certo exibicionismo no ver cinema, que até atrapalharia?



Também não. É possível assistir bem o filme de qualquer ponto da arquibancada, mesmo para aqueles que gostam de sentar próximo da tela, como este que vos escreve, que evitou, porém, a indolência das espreguiçadeiras quase coladas à tela, para ficar na primeira fila da arquibancada. Tampouco a fruição plena da gramática cinematográfica (movimentos de câmera, decupagem, a espacialização dos planos), fica opulenta demais, tudo é adequadamente proporcional. Há assim uma baita ironia com esse excesso todo, que casa muito bem com Casanova de Fellini. Difícil afirmar que em filme x ou y, o diretor italiano foi mais fiel à ele mesmo naquilo que seu sobrenome, a partir de determinada etapa da filmografia dele, passou a significar como adjetivo: desbragado, exagerado, grotesco, de cores fortes, de artificialismo puro. Mas não é incorreto afirmar que poucas vezes ele procedeu com mais ênfase nessas característica do que em Casanova.



Isto não signifique que ele assinou um dos seus grandes filmes, pelo contrário, se por um lado esta obra de 1976 está entre os 5 ou 6 trabalhos menos maravilhosos do diretor (incluindo os defeituosos de verdade), ainda assim é melhor, mais interessante, que milhares de realizações que pululam por aí. O roteiro, muito fraco (baseado de forma livre nas próprias memórias do sedutor italiano que viveu no século XVIII), faz com que a narração corra em blocos estanques, quase autônomos, e isto necessariamente não significaria um problema (nada contra cinema que se articule dessa maneira), se o diretor mostrasse capacidade de provocar enlevo total no espectador, seja nos momentos de pura celebração hedonista de Casanova ou nos aspectos mais melancólicos das atividades do grande conquistador. A obra parece melhor fotografada (pelo grande Giuseppe Rotunno) e montada, do que propriamente bem dirigida como um todo. A montagem, aliás, foi feita por um veteraníssimo técnico, Ruggero Mastroianni (irmão mais novo de Marcello, e que morreu antes dele).



Se Casanova não tem direção brilhante como grande parte dos filmes de Fellini, ainda que haja momentos de execução artística impecáveis (as seqüências com a boneca, por exemplo, por terem sido feitas como foram, e pelo que significam), ao menos o lastro moral de fundo revela notável sincronia e coerência com a obra do cineasta. Fellini achou, na segunda metade de sua filmografia, a verdade plena pela via da ilusão, da mitologia auto-referencial e ilusionista que criou como seu imaginário. E para isso, não economizou na paixão pelo exagero, sem medo do ridículo e de cometer erros. Como artista, ele não julga Casanova, tampouco celebra desenfreadamente a luxúria do conquistador insaciável. Ao final do filme, temos um senhor macambúzio, talvez arrependido de muito do que fez e do que desperdiçou, mas mantendo uma certa serenidade louca, que surge de quem viveu como quis e soube assumir isto de forma integral.



Interpretado por Donald Shuterland, que sempre foi bom e hoje é um grande ator (quase nunca tendo grandes papéis à sua disposição), em bela atuação (podemos afirmar isso pelas expressões, pois ele foi dublado em italiano), e na nababesca tela de cinema do Vivo Open Air (as tais dimensões equivalem, segundo consta, a um prédio de seis andares na horizontal), ver este Casanova representou grande prazer cinéfilo.



Como pensamento final me vem à cabeça a idéia de que uma noite tão agradável faz merecer uma correção de conceitos, ainda que ocasional e às vezes sujeita a recaídas. Se, por acaso, algum dia adquirir um celular, farei com que seja da marca Vivo, menos por expressas recomendações tecnológicas de amigos que lidam ou entendem de tecnologia (mesmo por que manterei-o desligado boa parte do tempo), e sim para estimular a companhia a continuar organizando eventos como este, o que é mais do que válido de lado a lado. E chega de pudores quanto a seleção de cinema. Sim, filmes-pipoca parecem ser mais adequados à tipologia geral deste evento (lembrando que há centenas de pipocas muito mais engrandecedores do cinema que muita coisa falsa, de arte). Mas uma sessão do metafísico Andrei Rublev numa tela como a do evento, seria uma ousadia sensacional. O sacro Tarkovski ao ar livre em pleno desfrute do profano verão carioca. Parece uma fusão para lá de interessante.

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