Críticas


O DOADOR DE MEMÓRIAS

De: PHILLIP NOYCE
Com: JEFF BRIDGES, BRENTON THWAITES, MERYL STREEP.
11.09.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Pretensa fábula com os piores vícios através dos quais se quer “passar uma mensagem”.

Uma das mais famosas observações de Freud reza que neuróticos sofrem de lembranças. Mas não no sentido de que as lembranças devam ser apagadas, pelo contrário. Sabemos, entretanto, que há muitas almas simples achando que vivências tristes ou/e traumáticas precisariam ser esquecidas. O enredo de O Doador de Memórias gira em torno de uma sociedade aparentemente perfeita, construída a partir do mesmo equívoco simplório, além de uniformizar o comportamento das pessoas de vários modos que não serão enumerados aqui.

Desde o início o filme deixa bem evidente a “mensagem” de que tal utopia não deve ser nenhuma maravilha, já que são extraídas as cores da fotografia, deixando tudo o que se passa nessa comunidade super-regrada em preto-e-branco - exceto quando nos é mostrado o que (e como) vê ‘Jonas’, o jovem personagem central da trama: ele percebe que há cores na natureza, sem ao menos saber o que são “cores”.

Por tais características peculiares e por possuir muitas outras qualidades, ao chegar à transição de adolescente para adulto (bem) jovem, Jonas não será dirigido para atividades habituais de seus colegas de faixa etária: algumas moças serão “mães biológicas” (ou “barrigas de aluguel” para fetos criados por manipulação genética, aparentemente sem que tenha havido o velho método da relação sexual para a reprodução), enquanto outros serão “cuidadores” das crianças pequenas até que sejam destinadas a lares específicos, de famílias formadas também por determinação dos “anciões” que governam este admirável (?) mundo novo; há também os “pilotos de drones”, etc. Mas Jonas será o único de sua idade a quem é dada a função de “recepção de memórias”, situação à qual apenas uma pessoa em cada geração é encaminhada. Haverá, obviamente, alguém que o oriente e que lhe transmita as memórias de tempos muito antigos, antes desta sociedade se organizar de modo tão estandardizado. As tais memórias guardadas por apenas uma pessoa por época são de um mundo tal como o conhecemos, com nossas grandezas e misérias, amores e ódios, guerras e paz, enfim o “pacote completo”.

Quando Jonas entra em contato com o “doador de memórias”, o filme fica colorido e “The Giver” (título original e como é chamado o personagem de Jeff Bridges) lhe transmite vivências até então inéditas para os indivíduos dessa pretensa "utopia": conhecer o crepúsculo no mar, andar de trenó na neve, conhecer música e danças, ser picado por uma abelha, estar no meio de uma guerra... Enquanto isso, o filme vai desfiando suas óbvias intenções morais de modo didático ao extremo, tratando seu público como um bando de bobocas que precisam de uma historinha mastigadinha tim-tim-por-tim-tim, criando uma fábula tão ingênua como é a ideia das pessoas que acham que lembranças ruins devem ser definitivamente apagadas.

O maniqueísmo mais primário é estabelecido pela oposição da “anciã suprema” (Meryl Streep) que, ao mesmo tempo em que direciona alguém para preservar as memórias (dolorosas) de quando aquela civilização era como a nossa, tenta reprimir as previsíveis consequências das descobertas de Jonas (ou de outros anteriores receptadores da História, mesmo sendo mencionado que já houve um “fracasso” por parte do receptador que precedeu Jonas). O roteiro passa por cima de várias incoerências como esta para vender seu peixe de modo tão banal que o que poderia ser uma demonstração esperta de que não existe o bem sem o mal, e que tais características antípodas fazem parte inerente de nossa humanidade/desumanidade - à escolha de cada um - transforma-se numa historinha rasa de moral pleonástica.

Mais lamentável ainda é ver Jeff Bridges em uma composição tão estereotipada e monocórdia, chegando ao ridículo com o uso impostado de sua voz gutural como um guru que transmite sabedoria; assim como é constrangedora a caracterização de Meryl Streep nesta que deve ser sua pior participação em um filme. No segundo time, Katie Holmes e Alexander Skarsgård comparecem com a inexpressividade habitual que, desta vez, até serve bem a seus robotizados personagens. E do jeito que a coisa é levada não dá para dizer que o trio de atores mais jovens revele algum talento especial. Um bebê que precisa ser visto chorando várias vezes comparece assiduamente de modo eficaz, mas ficamos pensando como é que fizeram para filmar a criancinha aos berros...

Depois da glorificação da linguagem “fofa” e tatibitate dos filmes de Wes Anderson, temos agora uma pretensa fábula desenvolvida com os piores vícios através dos quais se quer “passar uma mensagem” para mentes infantis, sendo que tudo isso já foi muito mais bem contado em mitos ancestrais como o da caixa de Pandora ou da árvore do Éden com seu fruto do conhecimento do bem... e do mal, saberes indissociáveis

Mas os responsáveis pela historinha do filme talvez tenham perdido a memória dessas lendas tão mais expressivas. Recomenda-se ler Dickens em "Um conto de duas cidades": “Foi o melhor e o pior dos tempos; a idade da sabedoria e a da insensatez; foi a época da crença e foi a época da descrença, o Século das Luzes e a estação das Trevas, a primavera da esperança e o inverno de nosso desespero: tínhamos tudo e nada tínhamos, íamos todos diretamente para o Paraíso, íamos todos no sentido contrário — em suma, o período era de tal modo semelhante ao atual que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistia, para o bem ou para o mal, falar dele apenas no grau superlativo, fosse de superioridade, fosse de inferioridade”.

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