Críticas


GAROTA EXEMPLAR

De: DAVID FISCHER
Com: BEN AFFLECK, ROSAMUND PIKE, NEIL PATRICK HARRIS
02.10.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Quando expõe a submissão da opinião pública a clichês moralistas explorados por programas sensacionalistas de TV, uma boa oportunidade de salvar o filme quase se estabelece.

Partindo de um enredo tão mirabolante quanto inverossímil, a direção de David Fincher naufraga pela dificuldade de injetar alguma dose de nonsense e ironia que tornasse aceitáveis os aspectos muito pouco críveis da trama criminal.

Só em uma apresentação de ficção que não tentasse deixar de ser puramente ficção é que poderíamos encontrar plausibilidade no que é exposto. Mas Fincher se mostra aprisionado a um estilo naturalista/realista do cinema norte-americano de rotina que não serve como moldura adequada para o que é absurdo no roteiro - escrito pela própria autora do romance original e que, por sua vez, também parece acreditar que os lances mais absurdos podem convencer às plateias tal como apresentados. Só um certo grau de nonsense formal poderia fazer com que o espectador mais crítico aceitasse o nonsense da história.

Por outro lado, quando expõe a submissão e volatilidade da opinião pública conforme clichês moralistas divulgados e explorados por programas sensacionalistas de TV, uma boa oportunidade de salvar o filme se estabelece, embora novas reviravoltas do roteiro afastem-no deste que talvez fosse seu melhor caminho (ainda que originado em história ruim). Não há como a plateia brasileira não associar o sobe-e-desce do que acontece com os personagens do filme com o sobe-e-desce dos candidatos nas pesquisas de opinião, evidenciando a volubilidade das massas manipuláveis por acréscimos de detalhes tidos como moralmente “ruins” ou “bons” aos perfis de pessoas em evidência, fazendo o “ibope” dos personagens descer e/ou subir em razão diretamente proporcional. Quem é herói pode ser transformado em vilão (e vice-versa) da noite para o dia.

Não se trata de cobrar do enredo que se restringisse a coincidências com as aparências da vida real e comum: seja em Hitchcock, seja em Almodóvar - para ficarmos com dois exemplos de cineastas que usam um clima de ficção desenfreada como modo de aludir a possibilidades incríveis da mente e do ser humanos - a suspensão da descrença é mais facilmente atingida pela habilidade narrativa que não se compromete com um formato de apresentação realista de episódios menos factíveis, permitindo que a ficção assumida acabe por passar como viável em seu próprio mundo diegético, dando-nos a ilusão de uma realidade compartilhável com o mundo real.

ATENÇÃO: SPOILER

No primeiro terço de projeção o elenco também não ajuda: Ben Affleck é famoso por suas limitações como ator, o que até poderia servir a essa fase de seu personagem totalmente tolo, boboca e sem-noção; mas nem para compor um personagem que já é um canastrão na vida, a canastronice do ator consegue funcionar a contento.

Roteiro e direção se mostram canhestros ao usar os personagens estereotipados da detetive que não se conforma com “explicações fáceis” e seu auxiliar (que argumenta que o que é simples, às vezes, é a verdade) debatendo a inocência ou não de Affleck.

Já a voz sussurrante estereotipada de Rosamunde Pike neste trecho do filme talvez servisse para antecipar sutilmente alguma ambiguidade de sua personagem - mas se houve tal intenção, foi mal aproveitada pela direção, pois o enredo, ao ser levado a sério, mostra-se desastroso, deixando todos os atores presos a tipos que não passam de clichês simplórios. No terço central que consideramos como sendo o único foco de relativo de interesse deste filme, a atriz se mostra mais satisfatória com a nova faceta de sua personagem revelada claramente ao espectador; mas não é convincente a capacidade do personagem de Affleck passar a ser tão hábil em uma entrevista para a TV depois de se expor tão estupidamente nas primeiras horas de desaparecimento da esposa.

No terço final, a busca de nova voltinha-surpresa retoma o hábito do enredo abusar de lances inverossímeis que são - paradoxalmente - jogados na tela em tintas realistas soando incríveis demais e/ou mal resolvidos e mal explicados. Em seguida, temos apelação para uma cena de Grand Guignol quando Pike surge banhada em sangue.

Talvez tenha havido intenção de fazer uma metacrítica interna quando o personagem de Affleck pergunta a outro como sua esposa poderia ter um estilete nas mãos se ela mesma dizia ter ficado amarrada o tempo todo por um sequestrador. Mas essa pergunta fica no ar sem que o filme se preocupe em oferecer uma resposta que resolvesse a pertinente e óbvia questão - ou que “piscasse o olho” para a plateia sugerindo que não seria para acreditar nos fatos da trama, mas, sim, nos seus significados (especialmente no que diz respeito às incoerências entre a vida pública e a vida privada de pessoas mais ou menos – ou subitamente – famosas, pelos mais variáveis motivos). Como a dúvida colocada no diálogo entre Affleck e um policial não serve para uma abordagem irônica e menos naturalista, a intenção desta passagem fica igualmente no ar; e a “resolução” no final só serve para lembrar que: para se ligar a um(a) psicopata, há que haver algum grau de psicopatia naquele(a) que se envolveu como o(a) mau-caráter. No final das contas, quem não tem muito caráter mesmo é o filme...

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    3943
  • selma weissmann
    25.01.2015 às 21:18

    Perfeito, só não merecia tantas palavras, muito latim para um defunto tão ruim. Abraço.