Logo no início de seu clássico estudo sobre a Formação da Literatura Brasileira, o crítico Antonio Candido propõe sua noção de formação a partir da idéia de sistema: obras ligadas por denominadores comuns, com características internas, como língua, temas e imagens, além de características de ordem social e psíquica, como "a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive, e um mecanismo transmissor (...) que liga uns aos outros." Embutida nessa noção, estão o sentido de tradição e a idéia de continuidade que cria padrões de pensamentos e comportamentos.
A dança brasileira, embora tenha iniciado esse processo proposto por Candido quase um século depois da literatura (que, para o crítico, se dá no período romântico), teve, e ainda tem, vários desafios e, entre eles, o da formação de seu público, elemento citado acima como parte dessa cadeia sistêmica proposta. Historicamente, como essa tradição começa a ser delineada no Rio de Janeiro no início do século XX (sobretudo a partir da fundação de sua primeira escola oficial de dança em 1927), a necessidade de uma crítica de dança foi fundamental. Havia que se entender como aquela linguagem cênica poderia ser produzida aqui e poderia ganhar contornos "brasileiros". Na ocasião da primeira temporada oficial do balé do Theatro Municipal, primeira companhia de dança do país, em 1939, a imprensa carioca contava com pelo menos oito críticos que, uma vez entendedores de música, se aventuravam em escrever sobre dança.
Dentro desse contexto, o crítico Jaques Corseuil (1913-2000), um dos primeiros realmente especializados no assunto, deve ser mencionado como peça fundamental nessa construção de uma história da dança brasileira e de seu público. Outros o seguiram e formaram uma tímida história paralela da crítica de dança brasileira. Nesse sentido, valem ser citados Antonio José Faro, Suzana Braga, e, em São Paulo, Nicanor Miranda e Lineu Dias, entre outros. Hoje, não apenas naquela cidade, mas em todo o país, o nome de Helena Katz representa essa ação de continuidade de se fazer pensar a dança dentro do circuito do jornalismo cultural.
Assim, com quase um século de atividade, a crítica de dança no Brasil ainda tem pela frente o mesmo desafio de ser um dos elementos de formação dessa tradição, apontando setas para diferentes alvos: no público, no artista e na própria obra. Se a palavra crítica conta em sua raiz etimológica com a palavra grega krinein, que significa "quebrar" e, ao mesmo tempo, "colocar em crise", ela parece caber nesse empenho de se pensar uma dança brasileira: ajuda a quebrar automatismos no entendimento do que o adjetivo "brasileira" significa para a dança, ao mesmo tempo em que coloca em crise, num processo contínuo e profícuo, o que se produz e o que se pensa na área no país.
Roberto Pereira é crítico de dança.
Texto publicado no Jornal do Brasil em 16-03-2004