A música clássica - que seria lógico chamar de européia, por razões históricas e culturais óbvias - morre nas praias do Rio de Janeiro. Ela é uma arte cara: requer anos de investimento pessoal a um músico, para não falar do bem mais raro, o talento. Precisa, para ser feita e apreciada num nível de excelência sem o qual não se realiza, que uma comunidade queira pagar por ela. E é uma linguagem universal, logo, internacional, que se esteriliza no isolamento. Grande música também é uma questão de dólares (ou euros, para voltar às origens...).
No Rio, uma ilha de alguns milhares de apreciadores, a maioria na segunda metade da vida, está cercada por um oceano de indiferentes ou possíveis interessados que não têm muito onde se agarrar. As instituições de Estado tratam essa arte com horror: investem o mínimo necessário para cumprir um dever (?), cultivando só para constar uma forma de expressão e comunicação antiga e "elitista" que não faz muito sentido. Certamente têm prioridades muito mais importantes – o que é compreensível, sobretudo quando a parte da comunidade que poderia se mobilizar financeiramente (o capital privado) não o faz, como faz a de São Paulo.
A saída de Ronaldo Miranda da Sala Cecília Meireles nesta terça-feira - porque, para variar, não tinha dinheiro para fazer nada - é emblemática: se o Teatro Municipal é uma vitrine chamativa demais para ser totalmente abandonada pelo governo do estado, a Sala – onde a música sai do silêncio mais prenhe de significação e a ele retorna, sem passar pelas urnas, os estádios, as ruas e quase sempre sequer os jornais – pode ser deixada para lá. Este estojo precioso onde poucos milhares de cariocas (e visitantes) cultivam com intensa discrição sua própria riqueza anímica, e nada mais, está para completar 40 anos. Para quê? Para quem?
O ouvido da cidade não parece afinado com a música clássica. A música brasileira é rica demais e atende muito imediatamente, junto com as outras músicas populares, às necessidade musicais da maioria. Tenho a séria impressão de que os cariocas não são capazes, não querem ou não precisam sintonizar com a música dos clássicos, senão eventualmente: são extrovertidos e ruidosos, gostam da comunicação imediata e unívoca, ao passo que ela floresce numa cultura do silêncio, da escuta pessoal e instransferível, quase solitária (é talvez a arte menos "social"), na introspecção e na sintonia fina com linguagens mais complexas. A própria miséria do comércio de discos clássicos na cidade parece dar conta da indiferença.
Uma generalização assim vale o que vale, mas ajuda a deixar de equacionar o paradoxo com panos quentes. Falando-se de crítica de uma arte, cabe perguntar a quem ela se dirige e quem a demanda. Desde a década de 1970 e o banimento da música dos currículos escolares, somado à crescente carência de investimento, todos os elementos necessários à formação de novos públicos estão em falta.
O crítico é um apaixonado, mas no Rio a frustração está mais perto de ser o seu pão cotidiano. Mesmo no nível da crítica jornalística, ele parece estar aqui para atender a uns happy few irrelevantes, como a arte que o apaixona. Resta-lhe informar, chamar a atenção para a excelência e tentar irradiar seu entusiasmo, que é um espelho de Alice: reflete na tentativa de chamar para dentro.
Pois a música européia, a linguagem que ela fundou, vem da emoção e a ela se dirige, mas passa pela mediação das formas musicais mais ricas e “inteligentes” que o homem criou; com sua irradiação universal, praticada com talento por tantos compositores brasileiros, ela é para muitos a experiência estética que mais se aproxima da transcendência, do sonho, a que mais finamente mexe na fibra humana de cada um de nós. Aquela que, fazendo cada um melhor, pode contribuir para o bem-estar de todos.
Clóvis Marques é crítico de música clássica
Texto publicado no Jornal do Brasil em 18-03-2004