Críticas


NA CAPTURA DOS FRIEDMANS

De: ANDREW JARECKI
30.03.2004
Por Marcelo Moutinho
A VERDADE E SEUS MÚLTIPLOS FIOS

Os Friedmans viviam o comum cotidiano de uma família suburbana de classe média em Nova Jersey até 1987, quando a revelação de um inesperado fato – e suas conseqüências – tornou-os protagonistas de uma dolorosíssima tragédia. Arnold, um respeitado professor de computação, Elaine, sua esposa, e os quatro filhos estavam reunidos em casa, comungando o Dia de Ação de Graças, quando se viram surpreendidos pela chegada da polícia. O mandado de prisão contra Arnold, por envolvimento com pornografia infantil, seria apenas o primeiro capítulo de uma série de acontecimentos que acabaria por resultar na desestruturação completa daquele aparentemente coeso núcleo familiar. Marginalizado pela comunidade local, o patriarca – agora acompanhado do filho Jesse, seu suposto cúmplice – receberia outra e mais grave acusação: a de abuso sexual das crianças a quem ministrava lições de informática.





Assim, à primeira vista, o enredo de Na Captura dos Friedmans poderia sugerir um documentário sensacionalista sobre o monstruoso homem que se esconde sob a capa do chefe de lar feliz. Depois de ouvidos os pais das supostas vítimas, os réus, as pessoas com quem a família convivia, o espectador receberia de bandeja uma história harmônica e coerente sobre o que ocorreu, e poderia sair da sala de projeção dominado por um simples sentimento de revolta. Mas o diretor Andrew Jarecki opta, nesta que é sua estréia no cinema, por caminhos mais complexos e interessantes. Para além da investigação da “verdade” do caso, o que o cineasta quer captar são as muitas nuances que o envolvem.



Não há posições privilegiadas. Se em alguns momentos as acusações soam inexoráveis, n’outros fica patente a fragilidade dos argumentos que as sustentam. Uma das seqüências mais interessantes, por exemplo, é o depoimento de uma jornalista da CNN. Estudiosa do caso, ela arrisca uma análise sociológica para explicar por que, à medida em que se disseminaram os rumores de que Arnold e o filho haviam abusado dos garotos, as denúncias se multiplicaram: talvez fosse necessário ser vítima também para continuar integrado àquela comunidade.



A montagem reveza-se dando voz a cada teoria possível a respeito da veracidade – ou não – das acusações. Falam os jovens que teriam sofrido os abusos. Falam outros, que o negam. Falam ainda os próprios Friedmans, o advogado que os defendeu, policiais... Quem mente? Quem fala a verdade? Diante da ambigüidade que atravessa todo o filme, o espectador acompanha de forma um tanto apalermada cada um desses fios discursivos na enervante busca por uma clarividência que nunca chega.



Malgrado o tema explosivo, o documentário não traz grandes inovações formais. Sob este aspecto, Na Captura dos Friedmans é bastante conservador, chegando a apelar em alguns momentos para dispositivos dispensáveis, como as tomadas em câmara lenta, que somente redundam o que já é essencialmente dramático. O que garante a qualidade do filme é a corajosa postura desconstrutivista de Jarecki e, é claro, a excepcional história da família. Curioso saber que o diretor originalmente pretendia apenas documentar a trajetória de Silly Billy, famoso palhaço novaiorquino, que por acaso vem a ser David, o primogênito dos Friedmans. Com ele, conhecera o flagelo da família e descobrira um raro material: horas e horas de filmagens em vídeo e Super 8, que focalizavam o dia-a-dia de Arnold e companhia desde a traumática “visita” da Polícia.



As imagens que tais filmes contêm desconcertam ainda mais o espectador e são outro dos fundamentos essenciais para a grandeza do documentário. Jantares, brincadeiras no quintal, cenas da espera do julgamento, na entrada do tribunal... Como num constrangedor Big Brother com muitas penas e nenhum prêmio, através destes flagrantes assistimos ao crescente conflito instalado entre os Friedmans desde as acusações iniciais. Mérito de Jarecki tê-los editado com tanta competência junto aos registros posteriores. Se há algum hiato em Na Captura dos Friedmans, é a ausência da fala de Seth, o caçula, que se recusou a ser entrevistado. Diante de tudo o que vimos em pouco menos de duas horas de projeção, mais parece sinal de sanidade.



# NA CAPTURA DOS FRIEDMANS (CAPTURING THE FRIEDMANS)

EUA, 2003

Direção: ANDREW JARECKI

Produção: ANDREW JARECKI, MARC SMERLING

Fotografia: ADOLFO DORING

Música: ANDREA MORRICONE

Duração: 107 min.

site: wwww.capturingthefriedmans.com

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