Especiais


MARCAS DA MEMÓRIA

23.11.2014
Por Carlos Alberto Mattos
Três filmes sobre ecos da ditadura no Brasil e na Argentina em mostra especial

Três filmes sobre ecos da ditadura no Brasil e na Argentina serão exibidos gratuitamente na próxima semana em cinco capitais e no Distrito Federal. Trata-se da mostra Marcas da Memória, promovida pela Associação Brasileira de Anistiados Políticos, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e o Instituto Cultura em Movimento.

A programação, no Espaço Itáu de Cinema de cada cidade, será a seguinte:

24/11 (segunda) - 18h: 500Os Bebês Roubados pela Ditadura Argentina, de Alexandre Valenti

25/11 (terça) - 18h: Militares da Democracia, de Sílvio Tendler

26/11 (quarta) - 18h: Eu me Lembro, de Luiz Fernando Lobo

A seguir, algumas considerações minhas sobre cada filme.

500 – Os Bebês Roubados pela Ditadura Argentina

A ação das Avós da Praça de Maio não é um tema novo no cinema. Já apareceu em pelo menos três documentários: Botín de Guerra, de David Blaustein (2000), Condor, de Roberto Mader (2008), e principalmente ¿Quién Soy Yo? Los Niños Encontrados en Argentina, de Estela Bravo, exibido no Cinesul de 2008. Esse novo filme atualiza os resultados da busca das Avós: dos 500 bebês sequestrados na ditadura, 88 haviam sido localizados até 2008; em 2013 já eram 113. Mas a retomada do assunto não diminui o impacto emocional da história, mesmo para quem já assistiu aos filmes anteriores. Para quem não viu, é dever de civismo e cinefilia.

O grande drama histórico do genocídio argentino se reflete nos dramas individuais daquelas avós tenazmente empenhadas, já por mais de 30 anos, na busca de seus netos. E também dos jovens que, de uma hora para outra, tiveram que refazer suas marcas de identidade ao descobrirem – ou confirmarem – que os supostos pais eram na verdade seus sequestradores, ou mesmo assassinos de seus pais biológicos. Isto sem falar no drama dos pais mortos nas prisões ou atirados de aviões no Rio da Prata, os grandes personagens elipsados mas presentes.

A cada nova abordagem do assunto, há detalhes sinistros que ainda não conhecíamos. As maternidades clandestinas, por exemplo, criadas dentro dos campos de detenção para as prisioneiras grávidas. Logo em seguida ao parto, os bebês eram subtraídos e enviados para adoção por gente desconhecida.

E há também os dados virtuosos, como a participação do Clamor, um grupo formado no Brasil em 1978 para ajudar na denúncia de abusos, procura de crianças desaparecidas e proteção de refugiados das ditaduras latino-americanas. A parceria do Clamor com as Avós foi importante em vários sentidos, até mesmo guardando os arquivos da organização argentina pelo período mais arriscado na Cúria Metropolitana de São Paulo.

500 tem estrutura de thriller, com flashes de reconstituição semelhantes aos criados por Theresa Jessouroun em À Queima Roupa e outros em computação gráfica. Mas o que engrandece mesmo o filme é sua estrutura dramática bem construída, uma trilha sonora mobilizadora e o ritmo com que o quadro histórico e humano se desenrola diante de nós. Coisas das quais o cinema não pode abrir mão, mesmo se o que conta já é forte por si só.

Militares da Democracia

De uns tempos para cá, o senso comum absorveu a noção de que o golpe de 1964 não foi apenas militar, mas um golpe civil-militar, tal o envolvimento da sociedade civil e o nível de aprovação momentânea da população. A outra face dessa moeda é considerar que nem todos os militares estavam alinhados com a quebra da ordem constitucional. E isso pode ser melhor absorvido pelo senso comum a partir do filme de Silvio Tendler.

Militares da Democracia reúne histórias de militares que disseram não ao golpe. Muitos foram cassados, presos e perseguidos profissionalmente. Alguns se exilaram, outros foram assassinados com requintes de crueldade. Pelos que já morreram falam os filhos, herdeiros de um orgulho que os faz encarar a câmera sem medo.

Os casos dos capitães Carlos Lamarca e Sérgio Miranda (este se recusou a cumprir as ordens de uma escalada de atentados terroristas militares que pretendiam inculpar a esquerda) já eram bem conhecidos. Outros nem tanto, como os do Brigadeiro Francisco Teixeira, que possibilitou a saída do Rio de ministros e políticos visados pelo governo golpista, ou de Raimundo Nonato Barbosa, supostamente o primeiro fuzileiro naval a depor armas para não reprimir os marinheiros que apoiavam Jango em março de 64.

O filme expõe a polarização ideológica no interior das forças armadas e os diversos focos de resistência que surgiram dentro dos quartéis. Foram vários os que, como Lamarca, passaram à clandestinidade para fazer a resistência armada. Alguns estavam ligados ao Partido Comunista, outros simplesmente respeitavam os princípios do estado de direito.

Silvio Tendler fez aqui um trabalho de imensa importância como divulgação histórica. Ele próprio tem uma história pessoal a acrescentar, uma dívida de gratidão para com um militar consciencioso. As primeiras cenas trazem o diretor dentro do quadro, falando em primeira pessoa, mas eis que, como em Utopia e Barbárie, essa dimensão acaba ficando para trás. Sua voz passa a ser representada ora por um narrador masculino, ora por uma mulher, contribuindo para uma ainda maior confusão de narrações dentro do filme. Ultimamente, tem me parecido que a emoção do Silvio, apesar de essencial para sua postura de historiador apaixonado, turva um bocado os seus critérios de explanação.

Eu me Lembro

Esse filme se propõe recontar a história dos anos de chumbo a partir dos depoimentos de perseguidos políticos e torturados pela ditadura que receberam o pedido formal de perdão do Estado através da Comissão de Anistia criada em 2001. É um misto de revisita ao passado, celebração do presente e alerta para o futuro. As últimas cenas, de repressão policial mais recente a manifestantes em prol da responsabilização dos torturadores, indicam que nunca é demais defender as liberdades civis. Em depoimentos de variada gama emocional, os ex-ativistas rememoram as violências sofridas na prisão, eventuais reencontros com seus torturadores, e aparecem comovidos por terem seu valor e sua luta reconhecidos publicamente perante a sociedade no âmbito das Caravanas da Anistia. Há entre eles professores, magistrados, camponeses e artistas, alguns objetos de reparação póstuma, como Marighella e Glauber Rocha.

Luiz Fernando Lobo, diretor da Companhia Ensaio Aberto de teatro, fez um documentário hardcore, sem firulas nem experimentações. Talvez devesse usar menos música no fundo de sua própria fala nas vinhetas poéticas com que faz avançar a cronologia. Mas o que está no centro de tudo são as palavras. Há uma quase teatralidade na forma como os relatos dos perseguidos se encontram com o discurso de reparação e homenagem da Justiça, geralmente na voz de Paulo Abrão. Teatralidade não no sentido de coisa falsa ou artificial, mas de uma épica que se realiza em espaço formal e diante do público.

Em dado momento, o sociólogo Solon Annes Viola comenta que deixamos para trás o país do “não me lembro”. O trabalho da Comissão de Anistia tem como função primordial o ato de reconhecer culpas passadas do Estado, mas tem como ação de base o exercício da memória. Lembrar para recobrar a dignidade. Eu me Lembro, o filme, se presta a criar uma memória dessa ação. Lembrar de como nos lembramos.

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