Talvez não passe de uma lenda, mas o cineasta, fotógrafo e indigenista belga Jean-Pierre Dutilleux conta como verdade. Em 1973, durante uma expedição pela Amazônia, ele e seus guias teriam sido emboscados por guerreiros Txucarramãe, dispostos a matar qualquer homem branco que encontrassem. Dutilleux teria sido poupado porque o cacique Raoni teria visto, na sua “caixa mágica” (a câmera), um importante aliado na luta pela sobrevivência de sua tribo. A aliança entre os dois ganharia o mundo através do documentário Raoni, de Dutilleux e Luiz Carlos Saldanha, vencedor de Gramado e indicado para o Oscar de longa documental em 1979.
Os índios brasileiros há pelo menos três décadas descobriram o poder da imagem e da tecnologia. Ainda nos anos 1970, o cacique-deputado Mário Juruna celebrizou o gravador de áudio com que registrava as promessas e acordos obtidos dos políticos. Cansados de serem apenas “mostrados” ou “representados” pelos brancos – em sua maioria estrangeiros –, as populações indígenas começaram a se interessar pelo domínio das técnicas audiovisuais, visando produzir uma versão relativamente autóctone dos seus costumes e de suas histórias.
A videasta e fotógrafa carioca Monica Frota foi uma das pioneiras na prática de transferir aos índios a autoria de seus vídeos. Em 1985, ela e dois antropólogos iniciaram um trabalho que consistia em colocar câmeras nas mãos de caiapós dos grupos Metuktire e Mekrangnoty, no interior do Pará. Lá passaram dois anos. No início, o vídeo serviu ao registro de hábitos e rituais de quatro aldeias. Mais adiante, os Caiapó passaram a usá-lo para se comunicar com outras aldeias, rever parentes etc. Daí para a troca de mensagens políticas e a formatação de protestos contra o estado foi, quase literalmente, um pulo.
Já havia, portanto, um cenário favorável quando Vincent Carelli criou, em 1987, o projeto Vídeo nas Aldeias, objeto da mostra que o Centro Cultural Banco do Brasil-RJ programou para a Semana do Índio (19 a 25 de abril). Nos últimos 16 anos, a ONG Vídeo nas Aldeias vem formando a primeira geração de cineastas indígenas brasileiros e divulgando sua produção nacional e internacionalmente.
O projeto de Carelli já forjou a criação de documentários clássicos que extrapolam o caráter etnográfico. Um deles é O Espírito da TV (1990), sobre as emoções e reflexões dos índios Waiãpi ao se verem pela primeira vez na televisão. Outro é Yãkwá, o Banquete dos Espíritos (1995), de Virgínia Valadão, que enfoca as longas festas anuais dos Enauêne Nauê em reverência aos seus antepassados.
Um dos métodos mais comuns nas oficinas de criação do Vídeo nas Aldeias é a troca de vídeo-correspondência entre tribos diferentes. Em A Arca dos Zo’é (1993), de Dominique Gallois e Vincent Carelli, os Waiãpi são apresentados aos Zo’é através de um vídeo e retribuem com uma visita pessoal, câmera em punho. Eu Já Fui Seu Irmão (1993), de Carelli, mostra a viagem de um líder Parakatêjê a uma aldeia Krahô que fala a sua mesma língua.
O contato inter-tribal, mediado pelo vídeo, tem sido uma ferramenta importante na preservação da consciência e da cultura indígenas, ao comprovar que uma determinada tribo não está sozinha no mundo, ilhada pela sociedade não-índia. No mesmo sentido atuam as produções da Vídeo nas Aldeias para a TV, como a série Índios no Brasil, apresentada por Aílton Krenak, e o Programa de Índio, realizado e apresentado por índios para a TV Educativa de Mato Grosso. Ambos estão representados na programação da mostra Vídeo nas Aldeias: Um Olhar Indígena.
Para se afirmarem como cinegrafistas, editores, técnicos de som, apresentadores e atores, os índios têm um caminho relativamente longo a percorrer. Precisam vencer uma paralisante timidez, absorver códigos de representação visual estranhos a sua formação e, ainda assim, manter o seu “jeito” de ver as coisas e narrar o mundo. Os documentários da mostra revelam amiúde a própria figura do índio como coletor de imagens e palavras, e as curiosas situações daí decorrentes. No magnetizante Wapté Mnhõnõ – Iniciação do Jovem Xavante”, por exemplo, um dos realizadores aparece justificando sua ausência das filmagens em determinado dia, em virtude da obrigação de ajudar a família numa corrida com toras.
Outro destaque da mostra é Das Crianças Ikpeng para o Mundo, de Kumaré, Karané e Natuyu Txicão, onde dois meninos e duas meninas (já casadas e com filhos!) apresentam os hábitos, comidas e brincadeiras de sua aldeia a um suposto espectador de outra tribo. O vídeo teria sido produzido como uma resposta a video-carta de crianças de Sierra Maestra, em Cuba, embora isso não seja referido. Ali, temos crianças que já superaram os bloqueios de temperamento, provavelmente criadas em ambiente perpassado pelo audiovisual. Trabalho, arte e exercício lúdico, então, se confundem de maneira graciosa e exuberante.
Nos dois debates previstos para os dias 22 e 23 de abril – com a participação do crítico Jean-Claude Bernardet, do cineasta Henri Gervaiseau, de antropólogos, historiadores e dos principais responsáveis pelo projeto Vídeo nas Aldeias – algumas questões complexas dificilmente deixarão de ser abordadas. Será possível evitar que o envolvimento dos índios com a produção tecnológica conduza à reprodução de esquemas viciados da representação televisiva? Como garantir que os padrões de ritmo e a estética desses trabalhos não se choquem com as formas tradicionais de expressão indígena?
Os freqüentadores da mostra do CCBB poderão, ainda, conviver com um grupo de novos realizadores indígenas que estarão documentando o evento e investigando a recepção do público aos seus trabalhos. Daí poderão surgir futuros desdobramentos para as atividades da Vídeo nas Aldeias.
# VÍDEO NAS ALDEIAS: UM OLHAR INDÍGENA
Centro Cultural Banco do Brasil - RJ
19 a 25 de maio de 2004
Debates:
Dia 22: O Olhar Indígena, com Jean-Claude Bernardet, Daniel Munduruku, Isaac Pinhanta, Ruben Caixeta e Mari Corrêa. Mediador: Henri Gervaiseau.
Dia 23: O Índio na Mídia, com Ailton Krenak, Vincent Carelli, José Ribamar Bessa e Isaac Pinhanta. Mediador: Carlos Alberto Ricardo.