Críticas


PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO, O

De: PAULO SACRAMENTO
16.04.2004
Por Carlos Alberto Mattos
DOCUMENTÁRIO COM MAIÚSCULAS

O Prisioneiro da Grade de Ferro é um excelente documentário que se apropria de duas premissas teóricas falsas:



1. O documentário é mais verdadeiro que a ficção.

2. O documentário em primeira pessoa é mais verdadeiro que o documentário em terceira pessoa.



A primeira premissa transparece no trailer e na publicidade do filme. “Se você pensa que já viu tudo sobre o Carandiru”, alerta o texto, fazendo uma alusão velada ao filme de ficção de Hector Babenco. Em seguida, sobre a tela negra brilha uma única palavra: “documentário”. É como se o trailer afirmasse ao espectador que, depois de ver tantas alusões indiretas, fabricadas ou incompletas sobre o maior presídio da América Latina, implodido em 2001, ele agora estaria diante da versão real, definitiva: o documentário – escrito assim mesmo, com letras minúsculas, mas com um tal destaque que as torna maiúsculas.



No próprio filme, em vários momentos, os presos reafirmam essa prerrogativa de superioridade do documentário enquanto retrato da realidade. “Vocês não estão filmando uma coisa que só parece e vai ser apresentada como se fosse. Estão filmando o que é mesmo”, analisa em off um traficante de maconha das internas. “Esse é o Carandiru de verdade”, diz a letra de um rap. Nesses momentos, o filme indiretamente reivindica a “autoridade” de um tipo de cinema que é feito para ser acreditado, mais que para ser apreciado. Mesmo que, dentro da imagem, as pessoas estejam mentindo, o documentário depende do crédito do espectador para aquilo que bota na tela.



Mas todos sabemos que as coisas não são tão simples assim. Enquanto o documentário aposta na “verdade” do fato que mostra, a ficção bem pode ser mais verdadeira em relação a um quadro geral que extrapola os meros fatos. Provavelmente, Apocalipse Now, de Francis Coppola, é mais fiel ao sentido profundo da guerra do Vietnã, por exemplo, do que todos os documentários jamais feitos sobre aquele conflito. O filme de Paulo Sacramento, ao penetrar com tanta sabedoria nas entranhas do Carandiru, acaba servindo para confirmar a qualidade da cenografia e dos aspectos, digamos, documentais do filme de Babenco.



O Prisioneiro da Grade Ferro é melhor não porque seja um documentário, mas porque incorpora, na sua estrutura fragmentada, o espírito do lugar. Sacramento não precisou sucumbir a uma dramaturgia capenga, não idealizou personagens nem saiu prejudicado por um ponto-de-vista vago, como o Carandiru ficcional. Ali está a mais coerente “versão” cinematográfica do livro de Drauzio Varella, embora não seja uma adaptação. A construção de uma perspectiva cambiante, ora de “dentro”, ora de “fora”, atende às expectativas de um retrato/auto-retrato sem retoques da vida nos pavilhões. É cinema contemporâneo de primeira qualidade, enquanto o filme de Babenco patinava num formato de cinemão ultrapassado, que já não dava conta das ambigüidades expressas no original de Varella.



Com relação à nossa segunda premissa, O Prisioneiro se vale de um recurso que está na ordem do dia: a entrega da câmera aos excluídos, na tentativa de captar sua auto-expressão. Isso tem acontecido com índios (confira a mostra Vídeo nas Aldeias: Um Olhar Indígena, de 19 a 25 de abril no CCBB-Rio), marginais urbanos (o recente filme uruguaio Aparte, de Mario Handler) e agora com presidiários. Em busca de uma espécie de “voz legítima”, contrária ao excesso de representação do cinema dominante, os filmes estão à caça de personagens que ajudem a construir sua própria imagem.



Assim, alguns internos do Carandiru foram instruídos a manejar a câmera, tomar depoimentos e selecionar o que quisessem mostrar de sua rotina carcerária. Temos, então, filmagens voyeurísticas de posteres de mulheres nuas, sessões de rap, tomadas impressionantes de homens encarapitados uns sobre os outros em celas minúsculas, uma seqüência antológica da noite filmada por um detento. O acesso à relativa intimidade do Carandiru, às vezes sem a presença dos realizadores, responde pelos melhores momentos do filme, ora meditativos e melancólicos, ora chocantes e reveladores.



Ainda assim, o próprio filme faz pensar sobre esse culto à auto-expressão através do manejo do equipamento e da escolha do enfoque. Com freqüência, a fala espontânea dos presidiários não parece ser mais informativa – ou mesmo mais autêntica – do que seriam as respostas supostamente obtidas por um bom entrevistador. Muitas vezes, o discurso piedoso e “arrependido” dos “manos” apenas descortina a retórica do bandido que se transforma em vítima e fervoroso aspirante a uma nova chance de liberdade. É uma peroração monocórdica e maçante, que mereceria um estudo no campo da psicanálise criminal.



Pela mesma razão, se aos moradores do edifício Master fossem dadas algumas câmeras e fitas de vídeo, dificilmente eles produziriam a mesma intensidade e a mesma “verdade” que habitam o filme de Eduardo Coutinho. Logo, nem sempre a documentação em primeira pessoa garante um acesso maior à complexidade do ser humano e às condições em que ele se encontra. Pode parecer mais legítimo pelas hesitações e turbulências na composição do quadro, pode deixar entrever algumas preferências, mas nem por isso é mais “verdadeiro”.



O documentário de Paulo Sacramento tem a dupla virtude de ser um retrato agudo do antigo presídio e de movimentar a roda da discussão nesse belo momento vivido pelo documentário brasileiro. Não vamos falar daquele epílogo de sabor institucional, completamente alheio à proposta do trabalho, em que aparecem diretores e ex-diretores do Carandiru, além de autoridades do governo de São Paulo. É tão esdrúxulo que parece colado clandestinamente pelo projecionista. Fiquemos com o filme, extraordinário pelo que mostra e pelo que faz refletir.





# O PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO (AUTO-RETRATOS)

Brasil, 2003

Direção e roteiro: PAULO SACRAMENTO

Fotografia: ALOYSIO RAULINO

Montagem: IDÊ LACRETA e PAULO SACRAMENTO

Som direto: LOUIS ROBIN e MÁRCIO JACOVANI

Edição de som: RICARDO REIS

Produção: GUSTAVO STEINBERG e PAULO SACRAMENTO / OLHOS DE CÃO PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS

Duração: 123 minutos

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