Críticas


WHIPLASH: EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

De: DAMIEN CHAZELLE
Com: MILES TELLER, J.K.SIMMONS, MELISSA BENOIST
07.01.2015
Por Luiz Fernando Gallego
O filme reproduz o equívoco de privilegiar a técnica como essencial para a genialidade artística.

Ao retratar o aperfeiçoamento do jovem baterista ‘Andrew Nieman’ (Miles Teller, em ótima composição), WHIPLASH (título original) segue um clichê do ideário calvinista norte-americano segundo o qual apenas um treinamento absurdamente exaustivo (seja qual for a atividade profissional) é capaz de levar o indivíduo a atingir a perfeição mencionada no título brasileiro - confundindo, no entanto, a excelência técnica com aquilo que faz de um músico um verdadeiro gênio.

‘Andrew’ estuda bateria na melhor escola para músicos dos EUA, sendo aspiração de cada aluno ser escolhido para a banda jazzística de 'Terence Fletcher' (J.K.Simmons), o mais temido e reverenciado professor daquele conservatório. O “método” de 'Fletcher' mescla intimidação, sarcasmo, ofensas e até mesmo agressão física, atingindo o estágio de grave assédio moral sobre seus alunos. Não é difícil lembrar o Sargento Hartman de Nascido para Matar, de Kubrick.

Entre mestre e aluno vai se estabelecer uma relação sado-masoquista que se desenvolve num crescendo de situações cada vez mais insólitas e inimagináveis dentro do que se espera de um aprendizado musical. Não é que não haja professores de música extremamente severos e exigentes, nem dizer que a melhor técnica seria supérflua para o profissional se transformar em grande instrumentista, mas ao dar tanta ênfase à "técnica" o filme incorre em equívocos: tanto no que quer demonstrar como na sua construção formal, tecnicamente exemplar.

Damien Chazell, diretor e roteirista de Whiplash, incorre em grave equívoco ao permanecer restrito à ideia de que a “genialidade” na performance musical (e ainda mais no terreno do jazz) seria atingida essencialmente pelo absoluto domínio da técnica ao lidar com o instrumento; assim como pela capacidade virtuosística de desempenhos incansáveis durante largos espaços de tempo, executando sua parte na velocidade máxima possível - ou impossível. Este equívoco não é só do personagem interpretado monoliticamente - como convém - por J.K.Simmons, pois o filme recorre a um exemplo que remete a Charlie Parker – que, entretanto, não ganhou o apelido de ‘Bird’ apenas por sua técnica, mas por usar a técnica como base para voos jazzísticos cujos registros até hoje provocam admiração. Genialidade é criatividade que vai além da técnica.

De certa forma coerente com essa ideia, o filme bate na tela engessado tecnicamente em excelente edição e fotografia admirável - a serviço de uma situação de assédio sádico por um lado e submissão masoquista por outro; ou seja, em um tipo de relacionamento mestre-aprendiz que talvez seja mais pertinente para lutas marciais do que na esfera musical. O filme de Chazell teria sido rodado agilmente em apenas 19 dias (sic) e traz aspectos técnicos brilhantes que servem à busca de atingir um "efeito" emocional sobre a plateia - e aos seus equívocos, tanto na forma como no que pretende demonstrar

ATENÇÃO: SPOILER

O roteiro quase não se desenvolve além do âmbito de avanços e recuos na trajetória do aluno, mas tenta três reviravoltas: 1) no sentido de revolta e insubmissão que 2) mais tarde serão seguidas de aparente reconciliação que, no entanto, 3) encobre vingança e tentativa de execração pública, só que com com inverossímil triunfo final, como se estabelecesse um ensaio de acordo entre as partes - o que chega a soar imoral de tão absurdo. É como se o jovem baterista fosse tão obcecado quanto o pianista de Shine e houvesse um acerto no "método" do professor/sargentão de Full Metal Jacket. Indigesto.

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Outros comentários
    3800
  • Antonio Teicher
    08.01.2015 às 19:37

    Perfeito! É um dos filmes assustadores que já vi, e num sentido terrível. Não está tão longe desses filmes sessão-da-tarde americanos sobre superação de jovens desencaixados socialmente. A busca da genialidade é assustadoramente aceita por todos. Ou 8 ou 80.
  • 4057
  • Pepe Mendina
    19.02.2015 às 00:26

    Discordo. O processo criativo da formação da maior parte dos gênios conhecidos - de Ali a Einstein, de Miles Davis a Elis Regina - tem na sua concepção a exaustão e prática incessante na área de atividade. Basta pesquisar a biografia de qualquer gênio da ciência, arte ou qualquer área de conhecimento para percebermos que, das muitas coisas em comum, um dos pontos de intercessão é a prática ou estudo quase obsessivo sobre algum assunto - chamemos como quiser. Evidentemente o domínio da técnica não faz o gênio por si só, como bem ressaltado nessa crítica. Entretanto o não domínio exaustivo da técnica, ou o descaso com o ato de praticar e estudar sobre determinada atividade, cria "mestres de faz de conta", pessoas aclamadas sem saber o que estão fazendo, falsários: falsos gênios, "artistas incompreendidos" e rasos na sua arte. Precisamos reverenciar a técnica novamente. Whiplash, nesse sentido, faz quase um serviço social no momento que, através da parábola aluno + mestre + superação, glorifica àqueles que sabem o que estão fazendo. Em tempos de faroeste de informação da internet e dos falsos gurus do conhecimento, é mais do que bem vindo um filme assim: é essencial.
    • 4059
    • Luiz Fernando Gallego
      19.02.2015 às 07:47

      Obrigado por comentar, Pepe. Como você mesmo escreveu (grato pelo reconhecimento) "Evidentemente o domínio da técnica não faz o gênio por si só, como bem ressaltado nessa crítica". Esse foi o meu foco central, discordando do que o filme diz expressamente com a anedota de que Charlie Parker foi quem foi depois que lhe jogaram pratos na cabeça. O texto não menospreza o exercício nem o domínio da técnica, apenas denuncia o modo francamente sádico de um suposto mestre assediar seu aluno. Nesse sentido discordo frontalmente do que você escreveu ("'Whiplash', nesse sentido, faz quase um serviço social no momento que, através da parábola aluno + mestre + superação, glorifica àqueles que sabem o que estão fazendo"). Fazer bem é uma coisa, fazer sado-masoquismo é outra. O "mestre" e o aluno perderam os limites, não sabiam o que estavam fazendo.