Como em seus filmes precedentes, o cineasta russo Andrey Zviaguintsev parte de um drama familiar para fazer uma crítica severa da Rússia contemporânea. E essa crítica aparece de forma nítida na primeira sequência do filme. Após alguns planos sombrios de natureza, a sequência termina com planos mais fechados de carcaças de navios encalhados em uma pequena enseada, com a água ligeiramente estagnada. A sociedade que o filme representará parece parada no tempo, carcomida e corroída por un monstro qualquer, que o filme se encarregará de revelar em seus mínimos e cruéis detalhes.
Não há a menor dúvida de que título do filme guarda uma certa proximidade com a mitologia bíblica de monstro marinho e diabólico capaz de provocar mudança planetária e destruição. Sempre associado no imaginário religioso à ideia de serpente, ele foi recentemente associado por pesquisadores à baleia cachalote. No meio do filme, em um momento em que a narrativa abre uma nova peripécia que será fundamental para o seu desfecho, vemos a primeira aparição de um imenso esqueleto, lembrando o de uma baleia, abandonado à beira mar. Em seguida, vemos imagens de uma baleia, antecipando a emergência do monstro que se abaterá sobre a vida de Kolia e de sua jovem esposa Lylia. Além de marcar uma ligeira mudança na linha de sua intriga, essa imensa carcaça simboliza e metaforiza a iminência do retorno do monstro governamental, cuja existência parecia ter sido parcialmente aniquilada pela aliança entre Kolia, o personagem principal e proprietário das terras cobiçadas pelo prefeito, e Dmitri, seu amigo advogado.
Todavia, a onipresença da tirania e do totalitarismo do Estado russo, assim como seus laços com a Igreja, aproxima o filme do livro de mesmo nome de Thomas Hobbes, clássico da filosofia política. Se a narrativa pode dar a impressão de endossar algumas das teses do livro, na verdade ela opta por uma leitura contrapontística, espécie de visão em negativo de algumas das principais teses defendidas pelo filósofo inglês. E o conflito que opõe o cidadão Kolia, homem simples e rústico, ao representante do Estado, o prefeito Vadim (a compra forçada por esse último da casa do primeiro por um preço abaixo dos valores de mercado), é apenas um desses exemplos. Essa arbitrariedade do prefeito nega a concepção do Estado como avalista do contrato social estabelecido entre os indivíduos e o poder, que põe fim à ausência de regras claras e à disputa permanente pelos bens materiais do outro, que caracteriza o estado de natureza descrito por Hobbes. O Estado russo não aparece como o protetor da vida e do patrimônio de seus cidadãos, mantenedor da ordem, mas como o responsável pela perpetuação da guerra típica do estado de natureza, pela instauração do caos. Para melhor reforçar essa possibilidade, a casa de Kolia fica em um lugar ermo, em meio à natureza, ligeiramente afastado da civilização.
E essa presença autoritária do Estado aparece, desde o início, na longa sequência de leitura do processo de Kolia, que a instância narrativa faz questão de filmar quase que integralmente, com a câmera aproximando-se, em plano frontal, lenta e teatralmente, dos responsáveis da justiça que fazem a leitura, transformando-os em simples fantoches, marionetes do poder. Ou ainda quando o advogado decide processar o prefeito por ter abusado de seus poderes e não encontra nenhum magistrado ou autoridade que possa ou queira receber as suas queixas. Primeiro aviso para que Kolia não brinque com as autoridades, é ele quem termina repreendido pela polícia local.
Se o livro de Hobbes defende uma visão laica do Estado, que deve ser separado do poder religioso (o poder é soberano, mas não é sagrado nem divino), no filme o poder emana de Deus e é fruto de sua vontade, como afirma o patriarca da igreja ortodoxa. E é Deus, através da Igreja, presume-se, quem determina a sua durabilidade. Evidentemente, não se trata de qualquer igreja, visto que o filme apresenta dois modelos diferentes e antagônicos de igrejas. Uma ligada aos ricos e poderosos, cujos representantes vivem em casas suntuosas, e uma outra, mais humilde, ligada aos pobres, cujos representantes vivem em casebres. Para os primeiros constroem-se belas igrejas, enquanto os segundos devem se contentar de ruínas. Em uma sociedade na qual o poder emana de Deus, apenas um outro poder, superior, pode ameaçar o poder, ou a evidência dos fatos, que nem sempre pode ser comprovada, como afirma Dmitri, o advogado.
Em regimes totalitários, o político e o religioso confundem-se, mesmo quando não aparecem associados. Trata-se da sacralização dos grandes homens. Uma das sequências mais críticas, irônicas e emblemáticas, tanto do ponto de vista dramático quanto narrativo, representa uma espécie de profanação desse santuário político-religioso. Trata-se do piquenique de aniversário de Stepanytch, o amigo policial de Kolia. A profanação do religioso começa no trajeto rumo ao lugar escolhido, quando a câmera filma o painel de um dos carros que conduzem os participantes e mostra santinhos religiosos colados ao lado de pequenas fotos de mulheres nuas. O religioso caminha lado a lado com o profano. Reunidos para beber, comer e praticar tiro ao alvo com garrafas, o aniversariante surpreende ao apresentar quadros com fotos de personagens comunistas históricos (Lenin, Brejnev e Gorbachev) como novos alvos. Como resposta à pergunta irônica de Kolia, se ele não teria rostos mais recentes, Stepanytch responde que falta o recuo histórico, denunciando o conformismo que marca a relação dos russos com seus chefes políticos, e indicando a sorte que aguarda os atuais políticos no futuro.
ATENÇÃO: SPOILERS
Quando, no final, a casa de Kolia é finalmente destruída pelo Estado, a grua que faz o serviço, filmada em close, adquire as feições de um novo leviatã. A grua é uma substituição metonímica do monstro estatal contra o qual lutaram em vão Kolia e sua família.
O penúltimo e belo plano do filme, com um comboio de belos carros pretos contrastando com a paisagem totalmente esbranquiçada pela neve, possui um duplo significado. O primeiro, e mais evidente, remete a um cortejo de mafiosos deixando a nova igreja, construída com o dinheiro oriundo da corrupção, após terem-na utilizado, enquanto espaço físico, para discutir seus negócios pessoais e escusos, e enquanto instituição, para referendá-los. Ao macular a brancura (a pureza?) da natureza, a tonalidade escura dos carros pode ser percebida como paradigma das personalidades sombrias dos políticos, religiosos e homens de negócios desonestos. O segundo significado transforma o tal cortejo em uma espécie de velório daquela sociedade.
O final do filme é extremamente negativo. A instância narrativa retoma a sequência inicial na ordem inversa, partindo das carcaças para a natureza, a fim de simbolizar o permanente estado de natureza de uma sociedade russa ainda na aurora de sua humanidade.
A direção é simples, despojada, mas extremamente eficaz. A câmera mexe muito pouco e quase sempre muito lentamente. O diretor faz uma bela utilização dos espaços, alternando planos abertos da natureza com planos mais fechados dos atores, que, por sinal, são muito bem dirigidos. Constantemente filmados em planos frontais, com a câmera colocada, muitas vezes, na posição da quarta parede, eles possuem uma representação contida, sutil, delicada. Apenas Kolia, impulsivo, e seu filho Roma, emotivo, destoam dos demais com eventuais momentos de uma expressão mais barroca. Há uma utilização pontual e racional da bela música de Philipp Glass (sua ópera Akhnaten), o que evita que o filme caia no dramalhão. O ponto forte do filme é realmente seu roteiro com sua dupla intriga, sua condensação no tratamento da informação sobre os personagens, de maneira a realçar a importância do presente da ação, e sua mistura em proporções ideais de comicidade e drama. O roteiro também trabalha com excelentes antecipações, como no caso da primeira aparição da carcaça do monstro, das imagens de uma baleia vista por Lylia, e da imagem da cabeça de São João Batista vista por Kolia em um dos muros da igreja em ruínas. Todas essas cenas antecipam uma catástrofe iminente.
Nesse drama pessoal e familiar de um homem do povo servindo de base a uma violenta sátira política, Andrey Zviaguintsev traça um retrato extremamente crítico e impiedoso da corrupção e do absolutismo dos dirigentes políticos da Rússia contemporânea.