Críticas


OUTRO LADO DA RUA, O

De: MARCOS BERNSTEIN
Com: FERNANDA MONTENEGRO, RAUL CORTEZ, LAURA CARDOSO
01.06.2004
Por Ricardo Cota
A VELHA INDISCRETA

Com certeza foi a imagem de Laura Cardoso na tela que me fez em determinado momento de O Outro Lado da Rua pensar em Tata Amaral. Não falo nem de Através da Janela, que seria a referência mais óbvia, até porque estrelado pela mesma Laura. Mas do próprio Um Céu de Estrelas, primeiro filme de Tata e que também tem algo em comum com a estréia cinematográfica reveladora de Marcos Bernstein.



Nos três filmes, a presença do velho nos leva a reflexões para além das próprias tramas. Uso o termo “velho” para não cair nas armadilhas de expressões como “idoso” ou “cidadão da terceira idade”, que amenizam o peso do envelhecimento e que não estão, de forma alguma, em consonância com a proposta dos três filmes em questão. Talvez se falássemos de Copacabana, de Carla Camurati, com sua idealização melancólica e nostálgica da velhice, pudéssemos usar outros termos. Mas não é o caso.



Em Um Céu de Estrelas, o centro da trama é o embate físico e moral entre um casal de periferia. Em meio a digressões sobre violência urbana e sexual, Tata dá o indício do que seria a temática central de seu filme posterior. Enuncia-se o tema da diluição familiar e do abandono na seqüência em que a mãe da protagonista, uma velha, é estupidamente assassinada. O personagem é praticamente expulso da trama. Naquela casa brutalmente sexualizada e oportunamente socializada pelas câmeras de tevê sedentas de fait divers não há espaço para velhos e suas ranhetices. Uma bala extermina qualquer incômodo.



Desenhado no mesmo espaço doméstico, Através da Janela dá dimensões arquetípicas ao envelhecimento. Laura Cardoso é uma velha mãe, apaixonada pelo filho e vítima da cegueira desta mesma paixão. A postura conformista limita seu espaço de ação ao lar e arredores, enquanto o filho ganha o mundo e é vencido por este ao cair na malha grossa da violência. Embora não seja morta, a velha de Através da Janela está condenada a uma não-existência, a uma subserviência maternal. Sua angústia é enxaguada num tanque.



Em O Outro Lado da Rua, tem-se uma visão completamente distinta do velho. Não que o filme deixe de lado temas como o isolamento e a crise existencial profunda que só o naufrágio da velhice proporciona. O que muda é o enfoque. O velho, no filme de Bernstein, não se conforma com sua condição. A imagem da protagonista Regina (Fernanda Montenegro) postada na janela de binóculo é a própria imagem do não-conformismo, de uma reação, ainda que desorganizada, a uma condição imposta pelo passar dos anos. O espaço doméstico inquieta Regina. O binóculo é a ferramenta do desejo latente e a função de consultora policial o disfarce para cair no submundo que lhe desperta fascínio e horror.



É através da janela que Regina irá encontrar Camargo (Raul Cortez). Ao cumprir a vontade da mulher, que pede para morrer com um mínimo de dignidade, sem o sofrimento de um tratamento irreversível, Camargo se transforma no homem perfeito para Regina. Ao projetar-se na vítima, Regina descobre que não aceita viver a qualquer preço e que precisa reavaliar a sua condição de velha, porém viva. Não fará como Patolina, interpretada por Laura Cardoso, que renuncia ao que lhe resta de vida para isolar-se no subúrbio com um parente. “Que horror”, dirá Regina ao comentar a atitude da colega de ofício, incapaz sequer de revelar o verdadeiro nome em seu processo de auto-aniquilamento.



Ao envolver-se com Camargo, Regina tira o disfarce de Branca de Neve, seu codinome de informante, e transpõe a janela da fantasia. É o que O Outro Lado da Rua oferece de melhor contribuição à reflexão sobre a imagem do velho não apenas no cinema brasileiro, mas na cinematografia mundial. No filme, a conquista da sexualidade não é fruto de uma infantilização, de uma ridicularização do velho, como no recente Alguém tem que Ceder. A sexualidade vem do conflito, do reconhecimento das ações físicas e psíquicas do tempo. Os conflitos só terminam quando a vida termina.



Regina não é uma típica velhinha de Copacabana, embora tenha características básicas como a companhia do cachorro, a vida solitária e até mesmo a disposição de perder qualquer vínculo social, ainda que de forma muito original. Regina tem disposição para sair, sim. Mas não para fazer acrobacias na praia. Regina quer viver, amar, integrar-se, ainda que temerosa, e conhecedora, dos riscos dessa ação. O que ela não admite, no entanto, é anular-se nas mesas de biriba. Seu jogo é outro. E para jogá-lo é preciso ir muito além do outro lado da rua.



#O OUTRO LADO DA RUA

Brasil, 2004

Direção:MARCOS BERNSTEIN

Roteiro:MARCOS BERNSTEIN E MELANIE DIMANTAS

Produção:MARCOS BERNSTEIN E KATIA MACHADO

Música:GUILHERME BERNSTEIN SEIXAS

Som:JORGE SALDANHA

Fotografia:TOCA SEABRA

Edição:MARCELO SOARES

Elenco:FERNANDA MONTENEGRO, RAUL CORTEZ, LAURA CARDOSO, LUIS PERCY

Duração:97 minutos

Distribuição:Columbia Tri Star

Site:www.ooutroladodarua.com.br

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