(contém spoilers)
As escolhas de Clint Eastwood e do roteirista Jason Hall sobre o que mostrar em “Sniper Americano” ajudam a entender o personagem e o tipo de filme que eles querem apresentar. Eles basearam-se nas memórias de Chris Kyle, herói de guerra definido pela wikipedia como “o mais letal atirador da história militar americana”, que acumulou 160 mortes confirmadas em combate, número que pode chegar a 255. Em sua biografia, Kyle diz que nunca matou uma criança. A primeira cena do filme mostra uma mulher e uma criança iraquianos na mira de Kyle. Após um longo flashback, vemos o desfecho da cena. Como ambos carregavam uma bomba, Kyle os mata. Depois, no alojamento, demonstra angústia e remorso. É um herói atormentado.
Clint Eastwood não quer que o espectador o enxergue como vilão. Se matou uma mulher e uma criança, é porque elas mereceram. No Iraque de “Sniper Americano” não há espaço para iraquianos inocentes. Civis ou militares, todos eles são maus como o diabo, como a cartilha maniqueísta de Hollywood nos ensinou em seus piores filmes. Se um civil iraquiano, após ter sua casa invadida, resolve ajudar o exército americano passando informações sobre um perigoso líder da Al-Qaeda, ele quer dinheiro para isso. No fundo, é um mercenário. Patriotismo “do bem”, só o de Kyle e seus companheiros. Se outro civil iraquiano, após ter sua casa invadida, resolve oferecer um jantar para os cansados soldados americanos, em alguns minutos ele vai revelar sua face do mal. Mais pro final do filme, há uma outra criança apontando uma pesada bazuca para os americanos, mas dessa vez ela deixa a arma cair no chão antes de atirar. Kyle não iria cometer essa crueldade duas vezes. Ele respira aliviado.
Não há um iraquiano inocente, mas o grande vilão do filme, o maior inimigo a ser batido, é sírio. Pouco se sabe sobre Mustafá, um atirador de elite que é uma espécie de “Kyle do mal”. Sua missão é matar o maior número possível de americanos. Em sua biografia, Kyle apenas menciona Mustafá de passagem em um parágrafo, dizendo que ele era um atleta de tiro olímpico sírio que usava seu talento contra soldados americanos e iraquianos. Não foi Kyle quem matou Mustafá, mas a dramatização simplória de Clint Eastwood seguindo a cartilha maniqueísta faz com que o “clímax” do filme seja a morte de Mustafá por Kyle num tiro de longuíssima distância com direito a câmera lenta acompanhando a trajetória da bala, um recurso técnico pra lá de banalizado e que destoa completamente da opção estética realista.
A falta de criatividade das situações de guerra é intercalada com a história privada do personagem. Desde o primeiro flashback da infância, em uma cena constrangedora em que o pai o ensina, sob a ameaça de uma surra de cinto, a virtude de se defender baixando a porrada no "inimigo", o filme se sustenta exclusivamente através de um maniqueísmo patriótico sórdido, querendo justificar toda a ação dos soldados americanos como se do outro lado só existisse Al-Qaeda.
A falta de sutileza é notada na necessidade de se dar ênfase, através de diálogos, ao fato de que Kyle é um bom marido e pai carinhoso, apesar de atormentado pelo vício que a adrenalina da guerra provoca nele. O drama da ausência sentida por sua mulher é explorado de forma reiterada e repetitiva. Mas o importante é não deixar margem de dúvidas sobre a condição de herói do personagem. Em outra cena um tanto piegas, um ex-combatente com perna mecânica o reconhece numa loja de pneus. Abraça o filho de Kyle e diz “seu pai é um herói”, após agradecê-lo por ter salvo sua vida. Mais tarde, no psicanalista, Kyle diz que o que o atordoa são as vidas que ele não pôde salvar. Mais ênfase, mais repetição. Nenhuma sutileza.
Na construção do mito, vale tudo, até passar para o espectador a ideia de que a decisão de Kyle se alistar se deveu aos atentados terroristas sofridos pelas embaixadas americanas na África e aos ataques às Torres Gêmeas, quando na vida real sua maior motivação para se alistar foi ter cansado da vida de rodeios.
Se havia uma chance para Clint Eastwood de fato questionar a indústria da guerra e as consequências irreversíveis na vida dos soldados quando eles voltam pra casa, seria explorando a morte de Kyle por um desses veteranos mentalmente perturbados. Mas isso sequer é mostrado, apenas, mencionado, de forma quase envergonhada, logo depois de reforçar o quanto ele era um bom pai e marido. Esqueçam o assassino, lembrem-se e mirem-se no exemplo daquele que mata “para salvar vidas”, essa é a lição deixada ao fim do filme, enquanto a bandeira americana tremula patrioticamente nas mãos da população em imagens verídicas de homenagens aos que perderam as vidas lutando por sua nação.