Críticas


SNIPER AMERICANO

De: CLINT EASTWOOD
Com: BRADLEY COOPER, SIENA MILLER, COLE KONIS
20.02.2015
Por Marcelo Janot
Faz tudo como a cartilha maniqueísta de Hollywood nos ensinou em seus piores filmes.

(contém spoilers)

As escolhas de Clint Eastwood e do roteirista Jason Hall sobre o que mostrar em “Sniper Americano” ajudam a entender o personagem e o tipo de filme que eles querem apresentar. Eles basearam-se nas memórias de Chris Kyle, herói de guerra definido pela wikipedia como “o mais letal atirador da história militar americana”, que acumulou 160 mortes confirmadas em combate, número que pode chegar a 255. Em sua biografia, Kyle diz que nunca matou uma criança. A primeira cena do filme mostra uma mulher e uma criança iraquianos na mira de Kyle. Após um longo flashback, vemos o desfecho da cena. Como ambos carregavam uma bomba, Kyle os mata. Depois, no alojamento, demonstra angústia e remorso. É um herói atormentado.

Clint Eastwood não quer que o espectador o enxergue como vilão. Se matou uma mulher e uma criança, é porque elas mereceram. No Iraque de “Sniper Americano” não há espaço para iraquianos inocentes. Civis ou militares, todos eles são maus como o diabo, como a cartilha maniqueísta de Hollywood nos ensinou em seus piores filmes. Se um civil iraquiano, após ter sua casa invadida, resolve ajudar o exército americano passando informações sobre um perigoso líder da Al-Qaeda, ele quer dinheiro para isso. No fundo, é um mercenário. Patriotismo “do bem”, só o de Kyle e seus companheiros. Se outro civil iraquiano, após ter sua casa invadida, resolve oferecer um jantar para os cansados soldados americanos, em alguns minutos ele vai revelar sua face do mal. Mais pro final do filme, há uma outra criança apontando uma pesada bazuca para os americanos, mas dessa vez ela deixa a arma cair no chão antes de atirar. Kyle não iria cometer essa crueldade duas vezes. Ele respira aliviado.

Não há um iraquiano inocente, mas o grande vilão do filme, o maior inimigo a ser batido, é sírio. Pouco se sabe sobre Mustafá, um atirador de elite que é uma espécie de “Kyle do mal”. Sua missão é matar o maior número possível de americanos. Em sua biografia, Kyle apenas menciona Mustafá de passagem em um parágrafo, dizendo que ele era um atleta de tiro olímpico sírio que usava seu talento contra soldados americanos e iraquianos. Não foi Kyle quem matou Mustafá, mas a dramatização simplória de Clint Eastwood seguindo a cartilha maniqueísta faz com que o “clímax” do filme seja a morte de Mustafá por Kyle num tiro de longuíssima distância com direito a câmera lenta acompanhando a trajetória da bala, um recurso técnico pra lá de banalizado e que destoa completamente da opção estética realista.

A falta de criatividade das situações de guerra é intercalada com a história privada do personagem. Desde o primeiro flashback da infância, em uma cena constrangedora em que o pai o ensina, sob a ameaça de uma surra de cinto, a virtude de se defender baixando a porrada no "inimigo", o filme se sustenta exclusivamente através de um maniqueísmo patriótico sórdido, querendo justificar toda a ação dos soldados americanos como se do outro lado só existisse Al-Qaeda.

A falta de sutileza é notada na necessidade de se dar ênfase, através de diálogos, ao fato de que Kyle é um bom marido e pai carinhoso, apesar de atormentado pelo vício que a adrenalina da guerra provoca nele. O drama da ausência sentida por sua mulher é explorado de forma reiterada e repetitiva. Mas o importante é não deixar margem de dúvidas sobre a condição de herói do personagem. Em outra cena um tanto piegas, um ex-combatente com perna mecânica o reconhece numa loja de pneus. Abraça o filho de Kyle e diz “seu pai é um herói”, após agradecê-lo por ter salvo sua vida. Mais tarde, no psicanalista, Kyle diz que o que o atordoa são as vidas que ele não pôde salvar. Mais ênfase, mais repetição. Nenhuma sutileza.

Na construção do mito, vale tudo, até passar para o espectador a ideia de que a decisão de Kyle se alistar se deveu aos atentados terroristas sofridos pelas embaixadas americanas na África e aos ataques às Torres Gêmeas, quando na vida real sua maior motivação para se alistar foi ter cansado da vida de rodeios.

Se havia uma chance para Clint Eastwood de fato questionar a indústria da guerra e as consequências irreversíveis na vida dos soldados quando eles voltam pra casa, seria explorando a morte de Kyle por um desses veteranos mentalmente perturbados. Mas isso sequer é mostrado, apenas, mencionado, de forma quase envergonhada, logo depois de reforçar o quanto ele era um bom pai e marido. Esqueçam o assassino, lembrem-se e mirem-se no exemplo daquele que mata “para salvar vidas”, essa é a lição deixada ao fim do filme, enquanto a bandeira americana tremula patrioticamente nas mãos da população em imagens verídicas de homenagens aos que perderam as vidas lutando por sua nação.

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Outros comentários
    4061
  • dina moscvici
    20.02.2015 às 22:01

    Já Bertold Brecht dizia - lástima de um povo que necessita de hérois - É bem o caso do filme de Eastwood - herói seria aquele que vence no concurso frenético do mais matar, não na defesa de algum princípio ético ou na salvaguarda de valores abrangentes, mas no simples concurso do mais matar. A guerra seria o bom pretexto para colocar essa avalanche de violência implantada na família por um super-ego paterno sobre uma infância acovardada e submetida - aí, a lei de talião impera . Se é bom pai, bom marido, mas esses afetos não conseguem preencher o vazio existencial onde a violência se apresenta como um ópio. A guerra comparece como ótimo pretexto para uma descarga repetitiva de um mesmo ato nefasto: se consumir e destruir o outro, mas tudo com muita culpa...para apelar por nossa adesão benevolente.....Talvez,quem sabe, Kyle, o protagonista, alcance nossa compaixão,mas, para Eastwood, nenhum perdão....
  • 4062
  • Lucas
    21.02.2015 às 02:14

    Excelente crítica, Marcelo. Transmitiu perfeitamente o tom maniqueísta que a obra nos passa. Achei o filme extremamente desinteressante, moldando um personagem extremamente panfletário. Sendo fã do Clint, saí triste da sala ao ver que ele se meteu en um projeto pífio, recheado de falhas.
  • 4063
  • Lucas
    21.02.2015 às 02:21

    Aproveitando o ensejo, gostaria de te perguntar sobre a ridícula cena onde Kyle segura o filho recém nascido. O que houve com Clint Eastwood para permitir que uma cena exacerbadamente tosca daquela, digna de um framboesa de ouro ( pois percebemos nitidamente que se trata de um boneco) , figurasse no corte final da película? ?
  • 4064
  • Conrado
    21.02.2015 às 09:44

    Me espantou a maneira evasiva como a origem e propósito do conflito no Iraque são tratados em "Sniper Americano". Talvez essa omissão do diretor não seja apenas uma escolha política, mas também a maneira mais sutil de Clint dizer ao espectador que essa guerra não faz sentido nenhum. O protagonista enxerga um sentido maior em seu trabalho, mas ele próprio não sabe explicar isso à sua esposa quando questionado da razão em ir para a guerra. O filme de Clint Eastwood não é, no entanto, nem um pouco descartável. Pelo contrário, é o seu melhor filme desde "Gran Torino". De qualquer forma, sua crítica abriu minha minha mente para outras interpretações sobre este filme.
  • 4065
  • Hugo Vila Nova
    21.02.2015 às 13:30

    Maravilhosa crítica. Ninguém com um mínimo de conhecimento cinematográfico que seja, meu caso, não sabe a importância que Eastwood tem para o cinema. Sua direção, em vários outros momentos, é quase épica. Contudo o mesmo gênio de Os Imperdoáveis, As Pontes de Madison, Sobre Meninos e Lobos, Gran Torino, etc, etc, etc neste caso específico flertou fortemente com a ortodoxia Republicana onde tudo além de suas fronteiras é, se não inimigo, no mínimo suspeito e a polícia do mundo, eles, têm que intervirem. Excelente.
    • 4066
    • Marcelo Janot
      21.02.2015 às 16:20

      Obrigado a todos pelos excelentes comentários. Lucas, o bebê de plástico é um equívoco tão patético e constrangedor para uma produção deste nível que preferi nem mencionar para não tirar o foco do que faz o filme realmente ruim.
    4067
  • Regis Trigo
    22.02.2015 às 17:47

    Respeito o ponto de vista do Janot, mas eu vi um filme completamente diferente, uma mistura de "Sargento York" e "Guerra ao Terror", e que segue a desmitificação do mito do heroi americano que o Clint vem fazendo desde "Os Imperdoáveis" e "A Conquista da Honra" (com o qual, me parece, o "Sniper" tem muitos pontos de contato.
  • 4068
  • Lucas Pires
    23.02.2015 às 16:19

    Marcelo parabéns pelo seu texto , eu estava pensando depois do filme , será que só eu percebo a hipocrisia nesse filme colocar o povo árabe como bárbaro e selvagem ; achei que o filme não foi feito pra o telespectador pensar , o filme ele afirma sua verdade , ele não questiona o motivo da guerra , não questiona se soldados são heróis ou são só mero instrumento de politica e interesses , pra mim um filme alienante que só induz o norte-americano a se alistar no exercito e a não questionar.
  • 4075
  • gian
    03.03.2015 às 00:00

    Assisti o filme agora há pouco e concordo inteiramente com tudoo que vc disse.
  • 4077
  • Murilo
    05.03.2015 às 09:50

    Não exagerem, o filme é bom sim. Com certeza deve levar o OSCAR de melhor ator. Ele fez o que tinha que fazer, incorporou o personagem, agora, se o personagem da história real era muito patriota, tosco, ou bla bla bla ae já é um problema político e de opinião própria. O problema mais grave foi realmente a parte do bebe no colo (era um boneco). Mas tirando isso e mais algumas invenções nota 8.8! Valeu o ingresso!!!
  • 4080
  • Caio Gabriel
    10.03.2015 às 20:25

    Com toda minha educação, discordo totalmente dessa crítica. O filme é bom, com cenas que te deixam sem fôlego e te fazem imaginar o que você faria em uma situação dessa. Porque afinal, não é essa a magia do cinema, te fazer viajar sem sair da poltrona? É claro! O filme tem seus erros (suas mentiras), mas pense comigo, ISSO É CINEMA...