Monster é o anti-Elefante. Se Gus Van Sant mostrou que os fatos concretos não importam tanto, mas sim o modo diferenciado como cada pessoa reage a eles conforme sua subjetividade, agora Patty Jenkins estampa na tela a constatação de que o mundo é injusto. Apesar da formulação inicial, não há exatamente uma oposição entre as duas visões. Até porque elas são mais complementares do que propriamente excludentes.
Ficções realizadas a partir de acontecimentos verídicos, Elefante e Monster têm, porém, propostas cinematográficas bastante diversas. No entanto, é preciso tomar cuidado com as aparências. Ainda que o filme de Van Sant seja mais refinado em termos de realização cinematográfica, em especial no que diz respeito à presença aparente de uma câmera não interveniente e à utilização do som, o longa de Jenkins não fica limitado a uma feitura acadêmica. A primeira seqüência, por exemplo, é formada por flashes da infância e da adolescência de Aillen Wuornos, acompanhados por uma melodia bruscamente interrompida no instante em que a imagem dela, adulta e desamparada debaixo de um viaduto numa das desoladas auto-estradas norte-americanas, desponta na tela. Esta ruptura nos “tipos” de som e imagem já traz contida a “temática” de Monster: a quebra abrupta da redoma de vidro.
Mesmo que Patty Jenkins nem sempre acerte em suas tentativas – numa das passagens finais, a da conversa telefônica entre Aillen e a namorada, Selby, a câmera fechada oculta do espectador “informações” bem previsíveis, a serem reveladas em seguida –, Monster ousa ao abordar a ilusão, flagrada tanto no impacto da perda precoce das crenças infantis quanto na ditadura dos slogans politicamente corretos (“Tudo o que você precisa na vida é acreditar em si mesmo”). Segui-los não faz Aillen avançar e parece difícil negar embasamento no real a esta visão mais desencantada do que propriamente cínica da vida.
É bem provável que Monster venha a ser criticado por retratar Aillen Wuornos como uma vítima das circunstâncias. Entretanto, a construção da personagem Aillen soa convincente. Uma mulher maltratada pelo meio externo e dotada de uma raiva que não diz respeito apenas aos clientes perversos que encontra pelo caminho no seu dia-a-dia como prostituta. Diferente disto, ela se torna portadora de um ódio contra o mundo – um sentimento generalizado, portanto. “Eu não gosto de ninguém”, diz para Selby no intenso início de relação. Desprezo reiterado num breve diálogo, no qual, ao ouvir o lamento da namorada diante de seu triste passado familiar, responde, sinteticamente: “É, mas as pessoas são assim”. Esta revolta global não é detectada no momento em que Aillen mata o cliente seguinte ao que a espancou mas antes, na violência de seu olhar para um funcionário que tenta impedi-la de entrar num rinque de patinação.
É a violência de personagens que não tiveram escolhas. Ou que, pelo menos, acreditam plenamente nesta negação. Em todo caso, não puderam fazer opções no sentido convencional e palpável do termo. Uma ponderação que talvez valha ainda mais para Selby do que para Aillen, que, ao final da projeção, confessa: “Não sei se posso me desculpar por tudo isso”. Já Selby resume com bastante clareza o seu processo de afirmação da própria homossexualidade. “Não estou escolhendo. É assim que sou e não vou mais me sentir mal por causa disto”, afirma (e não poderia ser mais inadequado e moralista o subtítulo brasileiro Desejo Assassino).
Insuflando vitalidade ao desgastado termo “baseado numa história verdadeira”, Patty Jenkins fez um recorte da realidade que não perdeu a dimensão humana na passagem para o cinema. Um filme que ganha pontos com o trabalho das atrizes – Charlize Theron, vencedora do Oscar, em interpretação bastante dedicada, em que pese um certo exagero na caracterização física de Aillen, e Christina Ricci, na medida como Selby –, mas tem sua grande qualidade na sensível transposição da dolorosa constatação de que quando as fichas realmente caem não há outra vida e nem outro mundo onde se refugiar.
# MONSTER – DESEJO ASSASSINO (MONSTER)
EUA/Alemanha, 2003
Direção e roteiro: PATTY JENKINS
Produção: MARC DAMON, DONALD CUSHNER, CLARK PETERSON, CHARLIZE THERON, BRA WYMAN
Trilha Sonora: BT
Fotografia: STEVEN BERNSTEIN
Elenco: CHARLIZE THERON, CHRISTINA RICCI, BRUCE DERN, PRUITT TAYLOR VINCE
Duração: 111 minutos