Convidados


DOCUMENTÁRIO NO BRASIL

17.07.2004
Por Carlos Alberto Mattos
SUA EXCELÊNCIA, O DOCUMENTÁRIO

Definitivamente, o documentário brasileiro saiu do limbo. Recobrou prestígio social e cultural, angariou uma legião de adeptos entre os jovens realizadores, impôs-se como fato relevante da produção fílmica e despertou atenções no exterior. Aos poucos, começa agora a reconquistar um lugar próprio de reflexão no âmbito das universidades e no mercado editorial.



Um passo importante nessa última caminhada é o surgimento de Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, uma coletânea de ensaios analíticos e/ou historiográficos assinados por quem já vem pensando o documentarismo brasileiro mesmo antes da “febre” atual. Embora não reivindique o papel de contar a trajetória do “cinema do real” no país, o volume organizado por Francisco Elinaldo Teixeira é o que, até agora, melhor atende a essa lacuna gritante da nossa historiografia cinematográfica. Quase sem exceções, a história do cinema brasileiro tem sido contada unicamente pela perspectiva do filme ficcional, relegando-se ao documentário alguns poucos parágrafos coadjuvantes ou notas de pé de página. O que não condiz com a sua importância estratégica e estética em diversos momentos do século passado ou com sua determinante influência sobre o próprio cinema de ficção.



A coletânea inclui abordagens panorâmicas da obra de sete grandes nomes do cinema documental, além de ensaios sobre aspectos que atravessam épocas ou autorias. Alguns textos se reportam a obras mais completas de seus autores, outros condensam ou foram extraídos de teses universitárias. O conjunto, porém, enfeixa uma excelente introdução à riqueza desse patrimônio relativamente esquecido.



Poucos conhecem, por exemplo, o trabalho seminal de Luiz Thomaz Reis como cinegrafista da Comissão Rondon, nas décadas de 1910 a 1930, quando a integração do Oeste brasileiro pela instalação de postes telegráficos deu margem aos nossos primeiros filmes etnográficos. O antropólogo Fernando de Tacca explica como o cinema ajudava a transformar “um índio genérico selvagem em um índio genérico integrado” (itálicos do autor) e detém-se sobre o refinamento do olhar cinematográfico do major-cinegrafista.



O documentário como aparelho ideológico de estado também merece um estudo detalhado e penetrante da historiadora Sheila Schvarzman, ex-aluna de Marc Ferro, a respeito do trabalho de Humberto Mauro no Instituto Nacional do Cinema Educativo. Sheila flagra a contradição do telúrico Mauro às voltas com um projeto de assepsia nacional através da ciência. E aproveita para mostrar o substrato documental que animava a ficção maureana desde seus primórdios.



Alberto Cavalcanti, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade também têm seus filmes documentais esmiuçados. Cavalcanti ganhou uma visão relativamente superficial de Claudio M. Valentinetti, em chave mais de defesa e elogio que propriamente de análise. Ao enfocar os documentários de Hirszman, Arthur Autran se sai muito bem ao dissecar os modelos “sociológico”, “antropológico” e “estrutural” em três diferentes filmes do diretor. Luciana Corrêa de Araújo assina um dos melhores momentos da coletânea, Beleza e Poder: Os Documentários de Joaquim Pedro de Andrade. Ela consegue o raro feito de articular observação política com um minucioso exame do estilo de filmar, ilustrando a maneira como essas duas instâncias interagem em qualquer documentário.



O cinema de Arthur Omar preparou uma curiosa armadilha para a professora Guiomar Ramos. Seu ensaio sobre a teoria do “anti-documentário” e a ritualística subjacente a todo o experimentalismo de Omar é pormenorizado a ponto de resgatar em estrutura o que nos filmes era pura desconstrução. O cineasta explode o edifício e a ensaísta o reconstrói para que melhor percebamos o efeito da explosão. Uma contradição que dá o que pensar...



Consuelo Lins contribui com uma síntese parcial do seu excelente livro sobre Eduardo Coutinho, embora não avançando além de Babilônia 2000. Já Tetê Mattos examina os procedimentos criativos de Glauber Rocha no subversivo curta Di. A apropriação dos métodos do cinema verdade francês e do cinema direto americano pelos documentaristas brasileiros é objeto de um travelling factual de Fernão Pessoa Ramos, que, involuntariamente, joga mais lenha no embaralhamento conceitual entre o “verdade” e o “direto”. A confusão aparece em vários ensaios, às vezes arrolando até o documentário de câmera indiscreta.



Patrícia Monte-Mór recupera um pouco da história do filme etnográfico brasileiro e faz especulações interessantes sobre o diálogo com a ficção nos dias de hoje. Atualidade que fica a cargo do organizador esquadrinhar em dois textos, portadores de um travo acadêmico que felizmente não toca aos demais. Isso, porém, não reduz a propriedade de suas colocações sobre a interpenetração do subjetivo e do objetivo no documentário contemporâneo.



Uma onipresença e uma ausência chamam atenção no livro. O clássico estudo Cineastas e Imagens do Povo, de Jean-Claude Bernardet, recentemente relançado, aparece como a grande base teórica, incontornável para todos os que se debruçam sobre o documentarismo brasileiro moderno. Bernardet, aliás, comparece com uma pensata sobre os filmes de compilação que ele próprio dirigiu a respeito de São Paulo e dos anos 1960. Por outro lado, a falta do pensamento solidamente fundamentado de Silvio Da-Rin é sublinhada pelo título do volume, claramente “inspirado” no seu livro inédito, embora amplamente citado, Espelho Partido: Tradição e Transformação do Documentário Cinematográfico.





Documentário no Brasil – Tradição e Transformação

Organizador: Francisco Elinaldo Teixeira

Summus Editorial, SP, 2004

382 páginas

Preço: 32 reais

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário