Críticas


FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO

De: MICHAEL MOORE
Com: MICHAEL MOORE, GEORGE W. BUSH
29.07.2004
Por Carlos Alberto Mattos
ALÉM OU AQUÉM DO CINEMA?

“Acesso é poder”, diz um mais jovem George W. Bush, ao ostentar, vaidoso, sua facilidade em chegar ao pai, então presidente dos EUA. Nessa cena rápida, imersa na torrente de argumentos de Fahrenheit 11 de Setembro”, Michael Moore acaba deixando um comentário reflexivo sobre a sua própria posição de documentarista mais poderoso do cinema mundial. Enquanto assistimos a seu filme, não são poucas as vezes em que somos levados a pensar: como ele conseguiu esta ou aquela imagem? Como teve acesso a tal ou tal material?



Na entrevista coletiva de lançamento do filme, uma repórter perguntou a Moore como ele havia conseguido as imagens de Paul D. Wolfowitz, braço-direito de Rumsfeld, penteando o cabelo de uma maneira especialmente repulsiva. Moore respondeu apenas que não podia dizer. Muitas outras fontes estarão certamente protegidas pelo sigilo. Sem contar as cenas de horror gravadas no Iraque, com um teor de violência e escárnio que nunca antes havia chegado à mídia americana, amordaçada pelo Decreto Patriótico. Moore teve acesso a esses materiais não apenas por ser um investigador incansável e destemido, ou por ter uma rede eficiente de pesquisadores. Mais que isso, ele conquistou o poder de representar um grande contingente de inconformados, que enxergaram no projeto de Fahrenheit 11/9 o meio mais eficiente de canalizar sua resistência.



Quando Moore se nega a revelar algumas fontes, não é difícil imaginar que está protegendo jornalistas, ativistas, políticos, assessores etc, que lhe confiaram o acesso a imagens raras como sessões de maquiagem na Casa Branca (base da devastadora abertura do filme) ou soldados falando sobre as músicas que ouvem nos fones dos capacetes enquanto estão mandando os iraquianos para o inferno. Na verdade, os filmes de Moore tornaram-se, mais que afrontas pessoais de um entertainer-ativista, operações coletivas de ataque ao status quo corporativista-bélico americano. Aí reside o poder crescente de Michael Moore.



É sintomático que, em Fahrenheit 11/9, o cineasta já não interponha tanto a sua própria figura como nos filmes anteriores. Nessa atitude, pode-se ver um certo recuo da postura personalista, em prol de uma rede de vozes (ocultas) que se faz ouvir através da voz do Moore narrador fora de quadro. Da mesma forma, Fahrenheit 11/9 não se contenta em ser apenas uma ótima peça de cinema. Quer ser um mobilizador em prol de causa nobre – evitar a reeleição de Bush – e para isso saca até o pedido de um soldado morto no Iraque. Nos créditos finais, vem o bordão característico: “Do something” (Faça alguma coisa), seguido do endereço www.michaelmoore.com. É marketing, lógico, mas é igualmente um convite à tomada de atitude. No site do cineasta, estão diversos links para quem deseja participar de uma brigada democrática (não necessariamente “democrata”) que alia a internet à ação prática.



Diante de tudo isso, fica claro que Fahrenheit 11/9, como já antes Tiros em Columbine, não pode ser visto ou abordado como um simples filme. Resta avaliar se está além ou aquém do cinema.



Há motivos para defender ambas as alternativas. Moore não disfarça o tom panfletário que preside sua edição – vide a infame sucessão de políticos americanos cumprimentando eminências sauditas ao som de uma canção de amor – e suas comparações de efeito, como citar uma cena do seriado Dragnet para puxar a orelha do FBI no episódio da escapada da família Bin Laden logo após o 11 de setembro. Sempre que um raciocínio precisa de reforço, Moore apela ao populismo mais elementar, lançando mão de negros cheios de razão e vazios de poder, pacifistas comedores de biscoitos, velhinhas indignadas, crianças iraquianas divertindo-se inocentemente, uma mãe em prantos diante da Casa Branca. Aparentemente, não há recurso do agit prop que ele considere inteiramente descartado de seu arsenal.



Por outro lado, é preciso compreender que Moore escolheu enfrentar o inimigo filmando-o. E o inimigo é notoriamente mentiroso, manipulador, inescrupuloso e violento. Luvas de pelica e argumentação equilibrada poderiam até tornar o documentário mais nobre, mas não o fariam tão efetivo a ponto de já se temer o seu efeito sobre os resultados das eleições de 2 de novembro. Nesse sentido, Fahrenheit 11/9 pode entrar para a história como o primeiro filme a contribuir decisivamente para alterar os rumos de um país – e quem sabe da história contemporânea.



De resto, é um enérgico documentário político, senhor absoluto de sua progressão dramática do geral para o particular, habilidoso como o cão ao extrair – ou sugerir – o sentido profundo de materiais de arquivo à primeira vista inócuos. É também obra autoral em suas reincidências temáticas e formais: a âncora sempre lançada em Flint, terra natal do cineasta; o discurso contra a imposição do medo como retórica política; o uso do repertório pop (músicas, filmes, anúncios) a título de comentário irônico; a provocação direta nas ruas como corolário das idéias apresentadas.



Michael Moore não é mais um artista individual – é uma espécie de ONG em ação, um foco de resistência contra a direita americana. E também um estilo influente de documentário. Alguns dos melhores ou mais badalados documentários recentes têm sua marca: A Corporação, de Jennifer Abbott e Mark Achbar, contém depoimentos seus sobre o despotismo das grandes empresas. Supersize Me, de Morgan Spurlock, emula seus procedimentos na denúncia dos males da Mac-comida. Control Room, de Jehane Noujaim, ataca duramente as omissões e parcialidades da imprensa americana a respeito da guerra do Iraque.



Enquanto Moore faz escola e lidera sua cruzada, a discussão sobre a qualidade do seu cinema passa inevitavelmente a segundo plano. Fahrenheit 11/9 é esforço de guerra contra o espírito de guerra.





# FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO (FAHRENHEIT 9/11)

EUA, 2004

Direção, roteiro e produção: MICHAEL MOORE

Fotografia: MIKE DESJARLAIS

Montagem: KURT ENGFEHR, T. WOODY RICHMAN, CHRIS SEWARD

Som: FRANCISCO LA TORRE

Edição de som: SCOTT GUITTEAU

Música original: JEFF GIBBS, BOB GOLDEN

Duração: 122 minutos

Site oficial: www.fahrenheit911.com





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