Críticas


SONO DE INVERNO

De: NURI BILGE CEYLAN
Com: HALUK BILGINER, MELISA SÖZEN, DEMET AKBAG
02.05.2015
Por João de Oliveira
O isolamento e o frio das montanhas da Capadócia como metáfora do ensimesmamento e das dificuldades de comunicação entre as pessoas.

Uma parte importante dos principais contos e peças de Tchekhov possui como cenário o campo ou alguma cidade interiorana. Tendo constantemente como tema principal a paisagem (a natureza, o espaço geográfico) e a passagem do tempo, sua obra narrativa procura representar o microcosmo da pequena burguesia russa do final do século XIX através de histórias girando em torno da rotina de um grupo de amigos e/ou de uma família cujo patriarca é quase sempre um homem mais velho, invariavelmente casado com mulheres muito mais jovens. Em razão de sua aparente preferência pela construção psicológica dos personagens, seus contos possuem um fio narrativo muito tênue, contentando-se em mostrar o cotidiano de personagens constantemente ociosos, passivos (incapazes de agir, de tomar uma decisão), tristes e pretensamente impassíveis.

Muitos desses elementos aparecem em Sono de Inverno, o mais recente filme de Nuri Bilge Ceylan, o premiado cineasta turco. Mais do que uma simples adaptação de três contos de Tchekhov, à obra de quem os filmes de Nuri Bilge Ceylan sempre foram associados por uma parte da crítica internacional, Winter Sleep (título internacional de Kis Uykusu) presta uma bela e bem sucedida homenagem ao grande escritor, médico e dramaturgo russo e, por extensão, ao teatro como um todo.

Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014, o filme narra o cotidiano de uma família pequeno-burguesa turca. Aydin (Haluk Bilginer), um ex-ator aposentado, é proprietário de um hotel, localizado nas belas montanhas da Capadócia, que ele administra junto com Nihal (Melisa Sözen), sua jovem e bela esposa de quem ele vive separado há dois anos, e sua irmã Necla (Demet Akba), ainda triste e amargurada pelo divórcio recente. Na medida em que a temperatura do lugar vai baixando, as divergências entre eles parecem aumentar. Surgem então os conflitos através de diálogos plenos de violência e de rancores, que abrem feridas e revelam personalidades afetivamente áridas. Como a natureza que os circunda, seus sentimentos parecem ressecados e enregelados.

Extremamente crítica, Necla condena a falta de ambição do irmão e a superficialidade, o moralismo e a falta de originalidade de seus artigos, enquanto Aydin condena o seu parasitismo, o seu caráter difícil e a sua insatisfação crônica, razões prováveis de seu divórcio. Necla também não gosta do ar falsamente complacente de Nihal, enquanto esta atribui ao cinismo, ao egoísmo e à arrogância voluntariamente opressiva de Aydin as razões de sua distância e da separação entre eles. Aydin atribui às duas o erro de terem projetado nele ideais e ambições que não faziam parte de seus projetos pessoais, criando um personagem idealizado. Apesar das divergências, da tristeza e dos dissabores, os personagens parecem paralisados por uma certa impotência, incapazes de agir e de buscar uma resolução para seus problemas pessoais e interpessoais. Embora vivam isoladamente, eles parecem temer a solidão ainda maior das grandes cidades. É a visão da morte de frio de um cachorro solitário, comparada à sobrevivência da passarada, que faz Aydin rever uma decisão previamente tomada. Ele é o próprio retrato da inação. Afora seus artigos, ele delega tudo a seus empregados. Uma indolência tanto física quanto psíquica dos três personagens principais que lembra vagamente a situação surreal de O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel.

Ociosos, infelizes e trágicos, os três personagens principais parecem ter escolhidos viver nas montanhas, distantes das cidades, para fugir do mundo. Embora pareçam temer a solidão, eles vivem separados, encontrando-se apenas para as refeições ou para compartilhar um chá. Momentos que aproveitam para pedir conselhos, para discussões intelectuais ou para alguns ajustes de contas. Todos buscam passar o tempo, que parece longo, matar o tédio e sufocar a tristeza interior exercendo alguma atividade diferente da do outro. Necla passa o dia lendo, Nihal pratica a solidariedade e a filantropia tentando arrecadar fundos para ajudar as escolas carentes do lugar, enquanto Aydin escreve artigos para um pequeno jornal local, quando não está observando furtivamente a sua esposa. Mais do que uma tentativa de dar sentido ao vazio existencial, essas atividades assemelham-se mais a uma busca de reclusão e de evitamento do outro.

Os atores principais são simplesmente fantásticos e transbordantes de realismo. Econômicos nos gestos e na emoção, eles exageram apenas no deboche, no cinismo, na ironia e na falsa impassibilidade de seus personagens que, repletos de contradição, possuem uma profundidade psicológica pouco vista no cinema contemporâneo. Apesar de todos os seus defeitos e falta de virtudes, a narrativa do filme, como na obra de Tchekhov, contenta-se em representá-los sem jamais procurar julgá-los ou condená-los, evitando dessa forma tanto o maniqueísmo gratuito quanto o processo de heroicização e de vitimização.

A direção é impecável e os diálogos, divinamente bem escritos, lembram alguns filmes de Bergman, cineasta que Ceylan admira. Diálogos que, mordazes, violentos, cínicos, sarcásticos, funcionam como uma espécie de duelo verbal do qual ninguém sai ileso. A narrativa transforma a Capadócia em um dos personagens do filme e utiliza a profundidade de campo para revelar não apenas a beleza dessa bela região montanhosa da Turquia, mas o isolamento, a falta de perspectivas dos personagens e a sua pequenez diante da natureza. Em diversas ocasiões, como nos planos iniciais do filme, quando temos dificuldade para distinguir o corpanzil de Aydin em meio à natureza e quando os corpos dos turistas parecem pequenas esculturas de pedra, a natureza aparece dominadora, maior do que o homem.

A câmera move-se pouco e filma os atores, uma grande parte do tempo, na posição frontal, colocando-se na posição do espectador, na quarta parede. O teatro, onipresente durante todo o filme, não aparece apenas nos enquadramentos. Além de no escritório de Aydin haver vários cartazes, fotos, máscaras e acessórios de teatro, o hotel chama-se Othello, peça à qual o personagem de Aydin pode ser percebido como uma pequena referência.

Se o ritmo lento (mas jamais arrastado) e os enquadramentos primorosos trazem prazerosamente à memoria o cinema introspectivo de Theo Angelopoulos, a amorfia e a crise existencial dos personagens fazem pensar nos melhores filmes de Antonioni. Tudo temperado pelos conflitos familiares tipicamente tcheckhovianos e as complexas relações matrimoniais e de classes nuribilgeceylianas. A luta de classes aparece na maneira como Aydin despreza e humilha as pessoas socialmente inferiores e na arrôgância com a qual ele trata seus empregados. Utilizando sempre a forma imperativa, ele jamais os agradece por um serviço prestado.

Esse conflito de classes aparece claramente em três momentos. Na forma impiedosa com a qual Aydin permite que seu capataz trate a família do imame (religioso) por causa de um atraso de dois meses no pagamento do aluguel; na cena em que, logo após uma discussão sobre a culpa, o remorso e o perdão, Aydin humilha o subserviente imame e seu sobrinho que vai a sua casa para pedir-lhe desculpas; e quando, quase no final, Aydin e seu amigo fazendeiro Suavi (Tamer Levent) unem-se contra o professor Levent (Nadir Sanbacak), que ousou denunciar a venalidade e o materialismo do primeiro na ocasião de um terremoto na região. A cena serve também para mostrar a fragilidade e a vulnerabilidade de Aydin, que se mostra o tempo inteiro como uma pessoa soberba que se considera impassível e inatingível pelos outros. Essa cena marca uma espécie de renascimento do personagem e pode ser vista como o ponto de partida do novo rumo que ele parece dar à sua vida no final do filme.

Um outro ponto forte desse belo filme é a sua "caravaggiana" fotografia, feita de claro e escuros lembrando, em alguns momentos, Barry Lyndon, a obra prima de Stanley Kubrick. Esse jogo de contraste não possui função apenas estética. Ele denuncia a contradição e a ambivalência dos personagens. Três sequências são particularmente bem sucedidas. As discussões entre Aydin e Necla, entre Aydin e Nihal, e a conversa desta última com o imame (Serhat Kiliç) e seu irmão Ismail (Nejat Ier), durante a qual este último inverte, por orgulho, uma humilhação dissimulada por trás de uma caridade que aparece, na realidade, mais como o resultado de uma vingança pessoal do que de uma ação filantrópica. Uma lição que pode também figurar uma nova direção na vida de Nihal.

Vale ressaltar também a bela utilização da sonata número 20 de Franz Schubert (que aparece também em A Grande Testemunha - Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson) que, apesar de sua pungência, não é utilizada para reforçar o pathos, mas como um simples leitmotiv. Assim, alguns trechos são ouvidos sempre que Aydin está pensando em sua esposa.

Quase todas as grandes sequências do filme, que não são muitas, podem ser percebidas como um sintagma (um conto) independente com início, meio e fim. Ainda assim, mesmo que não haja uma narrativa em seu sentido clássico (sucessão de acontecimentos ligados por laços de causalidade), os personagens chegam ao final do filme transformados pelas pequenas peripécias da intriga. Como na obra de Tchekov, o final aberto traz um pouco de otimismo, mas deixa as conclusões para os espectadores.











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