Críticas


O UNIVERSO GRACILIANO

De: SYLVIO BACK
07.05.2015
Por Carlos Alberto Mattos
Abstraiam o overacting documental para curtir histórias deliciosas em torno de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos ganhou um retrato à altura de sua controvertida personalidade em O Universo Graciliano, novo documentário de Sylvio Back. O filme chega ao Rio na simpática salinha do Cine Joia.

Espírito libertário, Graciliano teria defendido um estado totalitário que vigiasse a qualidade do trabalho de jovens escritores. Dado a paixões, viu o suicídio de um filho que o acusava de não amá-lo. Solidário aos desfavorecidos do Nordeste, era tido como pouco afável no trato pessoal. Um ser humano complexo, enfim, é o que salta dos relatos de amigos, parentes e companheiros de literatura, de política e até de cárcere. Todos nas faixas de 80 ou 90 anos, conviveram diretamente com o “Velho Graça” e têm suas memórias possivelmente fantasiadas pelo tempo.

Back não saiu atrás de um perfil oficial de Graciliano, mas de uma teia de lembranças, episódios e “causos”, muitos mesmo pitorescos. Há uma dimensão de especulação e inconfidência que perpassa os comentários de gente tão diversificada: do poeta Lêdo Ivo ao engraxate da prefeitura de Palmeira dos Índios; do colega de PCB Oscar Niemeyer ao historiador que narra pomposamente passagens da família Ramos; da filha Luiza Ramos Amado ao ex-motorista que achava Graciliano orgulhoso e “cheio de presepada”.

Resulta daí um desenho rico e multifacetado, que faz cruzar o homem, o escritor e o político. Conta-se, por exemplo, como ele ousou enfrentar seu pai, um “coronel” das Alagoas, quando era prefeito de Palmeira dos Índios. Ou como o PCB hostilizou a passividade de Fabiano, o camponês que protagoniza Vidas Secas. Segundo Lêdo Ivo, “Graça” fundou um certo Partido Economista, que um padre logo excomungou pela troca de sílabas: “Esse partido é comunista”. Graciliano teria chorado a morte de Stálin, mas nunca cedido ao realismo socialista na arte.

O Universo Graciliano é um talk show cerrado, em que rostos se sucedem na tela com poucas interrupções. Em busca de uma personalidade própria dentro desse modelo, Sylvio Back tomou duas atitudes que julga características de um “antidoc”. Primeiro, abdicou de usar fotos e materiais de arquivo relativos ao personagem. Os entrevistados fornecem incessante descrição – física e espiritual – de “Graça”, mas só veremos seu rosto, sem qualquer destaque, nos minutos finais. O espectador é portanto instado a formar uma imagem mental do escritor ao longo de quase todo o filme. As poucas cenas de época vêm de um cinejornal soviético, do documentário A Seca (Cesar Memolo, 1952) e da pioneira ficção alagoana Casamento é Negócio? (Guilherme Rogato, 1933).

A outra atitude se refere ao uso bastante idiossincrático da câmera e da edição. Nota-se que, durante as entrevistas, Back costumava ficar de pé e se mover pelo recinto enquanto o interlocutor estava sentado. Assim pretendia “tirar o entrevistado da zona de conforto”, fazendo-o olhar para cima ou em direções as mais diversas. Uma segunda câmera, empunhada sem muito cuidado, enquadrava a pessoa através de objetos ou embig closes geralmente de baixo, formando uma estranha linha ascensional com o olhar do entrevistado voltado para cima. Na edição, o corte entre as duas câmeras parece aleatório e destinado apenas a criar uma suposta agilidade, além de privilegiar movimentos falhos e desequilibrados.

Back assume esses recursos como linguagem, mas nas duas vezes em que vi o filme eles mais dispersaram minha concentração e chamaram a atenção para si mesmos. Não acho que toda fala documental deva ser frontal e bem comportada, mas gosto de entender as razões de escolhas mais atrevidas. Nesse caso, as intenções de “desarvorar o espectador” e “tirar o entrevistado da passividade” me pareceram em descompasso com o sentido basicamente informativo do filme. Convido, portanto, a que abstraiam o exercício de overacting documental para curtir essa deliciosa colcha de histórias em torno de Graciliano.

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