Críticas


MAIS UM ANO

De: MIKE LEIGH
Com: JIM BROADBENT, RUTH SHEEN, LESLEY MANVILLE
05.06.2015
Por Luiz Fernando Gallego
Mike Leigh nos faz conviver com personagens e situações prosaicas e fugidias do cotidiano de modo exemplar.

Em um dos quatro segmentos de Mais um ano, um personagem fala do desconforto de voltar para sua cidade depois de visitar um casal amigo em Londres. Ele tenta se aproximar de outra amiga do casal, descasada e carente, mas que o rejeita abertamente depois de uma investida mais direta por parte dele quando ela lhe dá uma carona para deixá-lo na estação de trens. Ele precisa correr ou vai perder o trem. Mas depois da cena em que o vemos saltando do automóvel, a tomada seguinte é a do trem, visto de baixo, atravessando a tela da direita do espectador para a esquerda. O trem passa e a câmera se deixa ficar alguns segundos na visão do barranco onde, no alto, há a linha férrea e o céu no fundo. A imagem escurece e surge o letreiro que abre a terceira parte do filme.

Este é um bom exemplo de como funciona o olhar de Mike Leigh sobre a história (ou não-história) que ele oferece a nosso olhar cativo das imagens na tela. O personagem Ken (Peter Wight) só é visto nesta parte do filme, obeso e presa de enorme voracidade alimentar, ansioso. Mas já faz parte do círculo de amigos do casal central em torno do qual as situações se desenrolam episodicamente. Na verdade, ‘Ken’ já faz parte do nosso círculo de personagens “conhecidos”. Como se fosse alguém que conhecemos há tempos: um amigo que vive mal uma vida rotineira e insatisfatória, que pode até ter sido bonitão quando mais jovem, mas que está acabado e cuidando muito mal de si mesmo: bebendo demais, fumando demais e comendo demais.

É assim que Mike Leigh consegue fazer o espectador conviver com seus personagens, captando nosso olhar para situações prosaicas do cotidiano, situações mais ou menos fugidias e encenadas com uma naturalidade que não tem nada a ver com o “naturalismo” forçado de propostas aparentemente “realistas”, mas que muitas vezes não passam de convenções do que as plateias foram acostumadas a considerar como “realidade” ou “a vida como ela é” – ou deveria ser para parecer “real”, ainda que só nas telas.

Dizem que Leigh filma após ensaiar com seus atores, sem um roteiro escrito e amarrado: haveria apenas “situações” que ele espera que os atores desenvolvam em improvisações, desde que fiquem do seu agrado. Não sabemos se ele mantém essa forma de estruturar o projeto em obras como este Another Year (título original), de 2010 e inexplicavelmente não lançado em circuito no Brasil até agora. Antes tarde do que nunca! E é difícil acreditar que tenha sido feito do modo descrito por mais que o elenco esteja acostumado com o cineasta, quase todos participantes de outros trabalhos cinematográficos do diretor. Mas já era inacreditável que este tivesse sido o método usado em sua realização mais famosa e bem-sucedida, Segredos e Mentiras, de 1996. Mais um ano é o trabalho mais pleno de Leigh desde então.

Mesmo usando a conhecida estrutura de segmentos correspondentes às quatro estações do ano, o que bate na tela importa como repetição e novidades de um quase-ritual nas vidas de um casal sessentão ou perto de chegar lá: Tom e Gerri (com trocadilho) mostram-se estáveis em sua longa parceria de vida, aficionados de sua horta - que visitam quase todos os fins-de-semana, fora de Londres - e receptivos a amigos com vidas menos estruturadas: o já citado solteirão ‘Ken’; a também mencionada (e figurinha fácil nas vidas de Gerri e Tom), ‘Mary’, descasada e carente ao extremo; um irmão de Tom que fica viúvo; outro amigo cuja esposa não o acompanha na visita por motivo mal esclarecido...

Em cada “estação” do ano e do filme repetem-se as visitas à horta, e as visitas à casa de Tom (Jim Broadbent) e Gerri (Ruth Sheen) por parte dos amigos e do filho único do casal, 30 anos e sem namorada à vista. Os diálogos eventualmente se estendem mais do que estamos acostumados a ver/ouvir em filmes, mas jamais se tornam saturados: se muita coisa parece repetição (o dia-a-dia, a rotina), algumas pequenas “novidades”, igualmente cotidianas, vão surgindo aqui e ali. Por exemplo, na fotografia do colaborador habitual de Leigh, Dick Pope, que muda sutilmente a cada época do ano em que o filme se passa, sendo mais notável a diferença entre a luz mais colorida da “primavera” inicial em relação ao cinza-azulado invernal do desfecho. Mas a gradação de uma época à outra é bem delicada, quase imperceptível.

A música também não parece variar muito, mas talvez também inclua delicadas variações, e é de Gery Yershon, que vem trabalhando com Leigh há menos tempo, oriundo de composições para o palco. E a montagem é de Jon Gregory, que não editava para Leigh desde Segredos e Mentiras, transmitindo, sem cortes abruptos, a fluência nas mudanças dos rostos e expressões dos atores em grandes planos de suas faces. Aliás, é impressionante a intimidade transmitida, mesmo em tela larga, quando Leigh enquadra os rostos em tais planos bem próximos, enfatizando os semblantes dos atores/personagens. E estes são essenciais para o resultado atingido: além do casal central, com o mais conhecido (e já oscarizado) Broadbent ao lado de Ruth Sheen, perfeitamente convincentes como dupla, um dos destaques é a interpretação de Lesley Manville como ‘Mary’, a um passo de cair na caricatura que a atriz evita em tocante composição interiorizada, “de dentro para fora”. Seu “diálogo” com o monossilábico David Bradley (minimalista do tipo “menos é mais”) é um dos seus grandes momentos, ao lado da cena final que se encerra em seu rosto consciente das diferenças entre “grandes amigos” e “família”. A atriz recebeu inúmeros prêmios e indicações por este papel, merecidamente.

Já mencionamos Peter Wight, em composição mais exteriorizada, propiciando a empatia do espectador para com suas vivências íntimas não-ditas, além do que é evidente em sua conduta “cardisplicente” (como dizia o nosso Antonio Maria sobre os descuidados com o músculo cardíaco). O não-dito, aliás, é um tema subjacente do filme, anunciado no prólogo quando Gerri, que trabalha com aconselhamento em posto de saúde, entrevista uma depressiva Imelda Staunton (outro rosto explorado em closes) mostrando como é difícil para os ingleses - mas não só - falar de sua vida íntima.

Talvez o casal Gerri e Tom seja tão centrípeto para os amigos porque sabem escutar: criam um clima de confiabilidade, são acolhedores e verdadeiramente amigos. Por outro lado, como é difícil para a senhora vivida por Imelda no prólogo, e também para ‘Mary’, aceitar o que Gerri indica como “auxílio profissional” (aconselhamentos como ela faz - e provavelmente psicoterapias confessionais como é a psicanálise).

Mais um ano também foi indicado ao Oscar de melhor roteiro em 2011, mas quem levou foi O Discurso do Rei. Pior para o Oscar.



Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário