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UMBIGO BROTHER

16.09.2004
Por Ricardo Cota
UMBIGO BROTHER

Faz tempo que a farra de blogs e fotologs que desaguou no Orkut - espécie de latifúndio virtual das fantasias individuais e coletivas - despertou a atenção dos mais diversos debatedores da comunicação, abarcando da fina flor da academia ao mais rastaquera dos blogueiros. A conclusão, quase em uníssono, é de estarmos diante de uma onda neo-individualista, como querem os sofisticados, ou de um fenômeno que os mais coloquiais classificam diretamente de umbiguismo.



Tal fenômeno se resumiria à febre de diários íntimos, escritos com câmeras digitais, cujo conteúdo é diretamente escoado para a corrente virtual. Nesses diários, o exibicionismo muitas vezes chega às raias do ridículo, para quem se expõe, ou do constrangimento, para quem perscruta a vida alheia. É a banalização total do cotidiano, já devidamente absorvida pelo mercado nos esgotados Big Brothers. O que importa, na festa da auto-indulgência, nem sempre é o entorno, os países que o blogado visita, os cinemas que o fotologado freqüenta, o que importa mesmo é o blogado ou o fotologado em si. Daí a definição umbiguismo, em sua pobreza semântica, ser bem mais adequada do que qualquer outra.



Engana-se, contudo, quem pensa que a prática umbiguista se resume a Orkuts e afins. Ela está por toda parte. Há periódicos cujos jornalistas, na falta de melhor assunto, se referem uns aos outros, de forma sempre elogiosa, é claro, criando mais uma comunidade narcísica do que um núcleo apropriado de comunicação. Para o leitor, a sensação é de total voyeurismo, como se estivesse testemunhando o dia-a-dia de um mundo que lhe é totalmente indiferente.



Na tevê, também se engana quem pensa que o umbiguismo limita-se a Big Brothers e afins. O umbiguismo pode ser constatado até em produções jornalísticas conceituadas. Recentemente, um Globo Repórter sobre prostituição infantil mostrou a jornalista solidária às suas entrevistadas, seja pranteando ao lado de mães indignadas seja acariciando adolescentes chorosas. Aqui, a prática traz um questionamento ético. Ao dividir tanto sofrimento alheio, a jornalista desfoca a atenção do tema, levando o espectador a identificar-se muito mais com a sua dor do que com o drama social que a matéria pretende revelar. Digamos que se trate de um caso de umbiguismo politicamente incorreto.



No cinema, o umbiguismo gerou pelo menos um novo subgênero: o blogmentário. Aqui, tão importante quanto abordar um determinado tema, o importante é saber QUEM aborda determinado tema. Michael Moore tem culpa no cartório, como um dos precursores da novidade. Em seus filmes, a presença do diretor é obrigatória. Não basta ser um documentário de Michael Moore, é preciso que seja um documentário COM Michael Moore. Mas seria injusto qualificar Moore como um mero ególatra. No fundo, seu objetivo é conseguir, através do constrangimento do entrevistado, revelar contradições que podem emperrar o raciocínio de peixes grandes, como o dono de uma poderosa fábrica de tênis ou um notório astro defensor da indústria armamentista. Estamos, pois, diante do umbiguista politicamente correto.



Super Size Me – A Dieta do Palhaço, de Morgon Spurlock, é o mais recente manifesto umbiguista que chega às telas do Brasil. Mas também seria injusto detonar o filme por sua abordagem explicitamente egocêntrica. O curioso aqui é notar como o diretor utilizou-se da prática comum dos blogs e fotologs, a de diário íntimo, para acompanhar as transformações ocorridas no próprio organismo ao longo de um mês empanturrando-se na lanchonete do palhaço Ronald. Inteligente, Spurlock não se limita às idas e vindas aos médicos, aos explícitos espetáculos de náusea ou às confissões da orgânica namorada de sua débâcle sexual. O filme é a oportunidade para uma reportagem sobre a crise de obesidade que afeta os Estados Unidos e que se reflete por onde se espalham as franquias da lanchonete. Mais um caso de correção política umbilical.



Pelo menos no cinema, o umbiguismo ainda tem conseguido um saldo positivo no balanço de suas contradições éticas e estéticas, talvez por apegar-se ao mastro nem sempre seguro da correção política. O risco de banalização, no entanto, é iminente. Mas não devemos temê-lo. Blogs e fotologs são apenas novas ferramentas na comunicação que, como toda novidade, arrastam legiões de admiradores irredutíveis e de detratores irascíveis. O cinema com certeza irá absorver em sua linguagem esses novos achados e sairão daí um mínimo de obras relevantes e um máximo de pura bobagem. A crítica deve apenas estar atenta para que as amplas possibilidades do documentário, historicamente conquistadas, não sejam soterradas pela banalização dos blogmentários. A experiência mostra que um olhar crítico para a realidade não é o mesmo que um olhar cínico para o próprio umbigo.

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