Com 15 longas realizados em um período de 16 anos de carreira, François Ozon é um dos mais prolíficos realizadores do cinema francês. Apesar do natural risco de altos e baixos para quem filma tanto e de ser frequentemente esnobado pela Cahiers du Cinema, ele conseguiu construir uma razoável reputação entre a crítica francesa. Seus filmes flertam com o cinema de gênero, seja com o thriller (“Swimming pool”, “Dentro da casa”), com o musical ( “8 mulheres”) ou com o drama (“Sob a areia”, “Jovem e bela”), e costumam ter em comum uma tensão sexual causadora de rupturas estruturais em famílias burguesas.
O roteiro de seu último filme, “Uma nova amiga”, é uma adaptação do conto “The new girlfriend”, da inglesa Ruth Rendell. Morta em maio deste ano, aos 85 anos, Ruth, que também utilizava o pseudônimo Barbara Vine, foi uma grande escritora de histórias de suspense e mistério, e cuja obra rendeu filmes como “Carne trêmula”, de Pedro Almodóvar, e “Mulheres diabólicas”, de Claude Chabrol.
Curiosamente, a adaptação feita por Ozon acabou amenizando o suspense presente no texto literário. O aceno ao thriller praticamente se resume ao instigante início de “Uma nova amiga”. O filme começa com imagens de Laura (Isild Le Besco) sendo maquiada e vestida como noiva – dentro de um caixão. Corta para discurso de sua amiga Claire (Anais Demoustier) no velório, entremeado por um flashback da trajetória da amizade simbiótica entre ambas, com direito a pacto de sangue e insinuações homossexuais, até o câncer que causa a morte precoce de Laura. O discurso termina com a revelação de uma promessa de Claire feita a Laura: iria passar o resto da vida cuidando do marido (Romain Duris) e da filha recém-nascida da amiga.
A expectativa de que a narrativa se concentrasse na obsessão gerada pelo estado de perturbação de Claire é quebrada quando ela vai visitar David pela primeira vez e o encontra vestido de mulher. A partir de então, o filme passa a ser sobre sua “nova amiga” e a relação das duas. O discurso melodramático do viúvo que quer se vestir de mulher para suprir a ausência materna de sua filha logo dará lugar ao tom cômico que acompanha a transformação de David em Virginia. Do momento em que ele desce a escada vestido como loura fatal de filme noir ao passeio no shopping (cuja cena parece extraída de comédias românticas como “Uma linda mulher”), fica claro o objetivo de gerar empatia no espectador para a opção crossdressing de David e sua relação com Claire.
Ao tocar em temas pelos quais Almodóvar transita com autoridade, Ozon parece estar prestando um tributo ao cineasta espanhol, sem o mesmo talento autoral. Por mais que a atuação de Romain Duris seja excelente, distante da caricatura, é nos momentos em que foca na ambiguidade emocional de Claire que o filme cresce. Mesmo sem conseguir atingir o mesmo grau de excelência de "Dentro da casa" na mistura entre a reflexão de cunho social e psicanalítico com o formato de thriller de suspense, o novo filme de François Ozon tem qualidades suficientes para ser considerado acima da média.
publicado originalmente no jornal O Globo em 17.07.15